SILMARA
Diante da porta de aço da enfermaria de psiquiatria estava parada já havia dois minutos. Todo seu ser lhe gritava para subir até o quinto andar e pedir demissão e não aceitar aquela humilhação. Três anos! Três anos! Foram necessários três anos para deixar aquela UTI bem arrumada, com uma equipe coesa, bem treinada, motivada. Agora, depois dela ter feito todo o trabalho, outra enfermeira ia colher os frutos. Nem a porra de um obrigado ela recebeu! Sabia que a política da instituição era essa, só que nunca imaginou que fariam isso, não com ela. Pior de tudo, jogar na Psiquiatria, que ela não conhecia nada! Decidido, iria para o quinto andar!
Nisso uma moça da idade dela, um pouco mais velha talvez, lhe tocou nas costas:
-"Boa tarde, você é a nova enfermeira da tarde? Prazer, meu nome é Tamires, eu sou uma das auxiliares do turno. Bem, na verdade eu sou a auxiliar do turno, porque ainda não tem ainda outra fixa, então cada dia eles mandam uma. Qual é o seu nome?"
-"Silmara."
-"Seja bem vinda Silmara. Não precisa ficar com medo. O trabalho é super simples e eles, na maioria das vezes, são muito cooperativos e educados. Um ou outro dá um pouco de trabalho, mas raramente é coisa muito complicada. Já, já você pega o jeito."
Nisso já tinha pego no braço dela e a puxado com leveza para dentro da porta de aço que tinha se aberto para a saída de uma funcionária da limpeza. Rapidamente a enfermeira da manhã a reconheceu, cumprimentou e passou o plantão, que ela achou ridículo de tão raso. Logo depois chegou a outra auxiliar que iria trabalhar naquela tarde. A conhecia pois ela às vezes cobria a UTI em que ela trabalhou. Teve que se segurar para não mandar ela embora na mesma hora. A colaboradora em questão, Vanessa, tinha evidentes atributos físicos, uma bunda enorme e modelada e seios avantajados. Fora os seus 1,85m que já chamava a atenção. Ela era uma das muitas funcionárias que a escala fazia que ela trabalhasse em diferentes setores no mês. Ela nunca aparecera com uma roupa tão justa na UTI, e teoricamente lá, não haveria problema algum. Mas aqui! Olhou para a outra auxiliar e não percebeu nela o menor espanto. Definitivamente este lugar não era para ela, na primeira oportunidade iria subir no quinto andar.
O telefone do posto de enfermagem começa a tocar e ela atende:
-"Hospital Geral de D..., Setor de Psiquiatria, Enfermeira Silmara, o que deseja?
-"Boa tarde. Eu sou esposa do D. Eu só queria que avisassem para ele que a filha dele está bem e o bebê está bem também"
Colocou a mão no bocal e perguntou sussurrando para a auxiliar:
-"Tamires, a gente pode passar recado da família para os pacientes?"
-"Recado pode, pode dizer que ligou, o que falou. Só não pode deixar eles falarem diretamente com eles."
-"Pode deixar, eu passo o recado sim, pode ficar despreocupada.'
-"Certo. Quem é este D?"
-"Aquele mais rechonchudo que está na sala assistindo jornal."
-"Ah tá. Senhor D. Senhor D. Venha até aqui o posto por favor. Prazer, meu nome é Silmara, eu sou a enfermeira que vai estar com vocês agora no período da tarde. Eu só chamei o senhor aqui porque sua esposa ligou e pediu para te avisar que sua filha está bem e o bebê também".
Aquele homem gordo, de olho roxo e semblante fechado, de repente, como mágica, pareceu ter sua face resplandecer e as lágrimas corriam pelos seus olhos sem controle. Ele permanecia ali, em pé, sem falar nada, só sorrindo e chorando. Demorou uns dois minutos para que ele se recompor e dizer:
-"Obrigado, muito obrigado."
Saiu em direção ao seu quarto. A enfermeira ficou também do seu lado atônita. Olhou para os lados, mas as duas auxiliares estavam ocupadas em outros afazeres. Encafifada pegou o prontuário dele e viu a anamnese de entrada e a evolução médica dos últimos dois dias, assim como o relatório mandado pelo CAPSAD. Estranhou a ênfase no segredo que ele era enfermeiro, desejo expresso pelo paciente várias vezes. Mas era um enfermeiro psiquiátrico, e com quem melhor começar a aprender os macetes da área. Decidiu ir até o quarto dele, arrumou uma prancheta e uma caneta e foi. Encontrou o colega dele dormindo e ele com o olhar no teto com um livro aberto no peito.
-"Com licença, posso conversar um pouco com você?"
-"Lógico!"
Sentou-se na cama
-"Você estava muito preocupado com a sua filha e a criança que ela estava esperando, não é?"
-"Quando você me disse que eles estavam bem, tirou um mundo das minhas costas. Se ela perdesse essa criança ia ser mais uma culpa, além de todas que eu já carrego. Afinal de contas ela teve o sangramento me espancando. Elas nunca iam me perdoar. Ainda acho que não vão."
-"Porquê não?"
-"Aprontei demais, fiz besteiras demais, internações demais, por algo que é tão simples, tão lógico. Eu não posso usar drogas. Mas eu sempre acho que vou conseguir usar só uma, só aquela vez, que daquele jeito não vai dar problema, naquele horário ninguém vai perceber. Vou falar uma verdade, só Deus não desistiu de mim, porque eu já desisti."
-"Vocês estão juntos há quanto tempo?"
-"22 anos"
-"Você acha que se ela tivesse desistido de você ela teria se dado o trabalho de ligar aqui e te informar que tua filha está bem e o neném também? Deixa de pensar tão negativo, rapaz!"
Falando esfregou seus cabelos com força.
-"Precisando conversar ou um remédio para diminuir a ansiedade me procura, tá bom?"
-"Tá bom."
Saiu revigorada da conversa com o paciente. Queria falar sobre muitas outras coisas que a chocaram quando leu no prontuário, mas era melhor esperar um momento melhor. De uma certa forma havia começado a sua nova função e isto era algo bom. Sentou-se em frente ao computador e escreveu no prontuário eletrônico dele toda a situação do telefonema e a conversa posterior. Passou o resto do plantão conversando com a Tamires sobre como funcionava a enfermaria e olhando a Vanessa de canto de olho e as reações que ela provocava ao andar de um lado para o outro. Mas preferiu ficar calada sobre isso, pois não percebia surpresa em ninguém, o que mais a surpreendia. Foi-se nisso as seis horas de plantão, hora de voltar para casa.
Desceu até o estacionamento conhecido como "do proletariado", entrou no seu "nem nem" (nem de rico, nem de pobre) e o mesmo desânimo de sempre se abateu sobre ela. Sabia os motivos dele, só não os contava para ninguém. Odiava ir para casa, ver a filha e brincar com ela, dar atenção para o marido. Tudo que todo mundo sonha e que ela tinha e não queria. Saiu com o carro pensando nisso.
Caçula de quatro irmãos, todos homens, sempre fora competitiva ao extremo. Ainda mais que toda a família era de policiais militares, tudo era rígido, tinha-se que provar o seu valor o tempo todo. Só que a genética não a ajudou. Baixinha, em uma família de homens altos, uma tendência a ser gorda, não importava os exercícios que fizesse e um rosto comum. Se destacava nos esportes por um enorme esforço, assim também nos estudos. Perdeu a virgindade na mesma idade das suas colegas porque "pegou" um dos garotos bonitões do colégio completamente bêbado. Mas só veio a ter seu primeiro namorado com o seu marido.
Fez o curso técnico de enfermagem junto com o colegial. Pagou a sua faculdade. Fez concurso para entrar na Academia do Barro Branco e passou só pra mostrar aos irmãos. Ela era assim. O contrário do seu marido. Frequentaram a mesma turma na escola da polícia militar e as famílias frequentavam a mesma igreja. Eram bons amigos. Em uma festa de família onde ela estava deprimida e bebeu demais, arrastou ele para um quartinho e praticamente o estuprou. Só que só invés de desaparecer como os outros, ele passou a lhe mandar presentes, mensagens, a ligar. Assim noivaram para a imensa alegria das duas famílias e casaram.
Resolveu ter um filho logo porque seria só um. Depois que a menina nasceu e desmamou ele assumiu os cuidados com o maior amor e ela voltou a sua busca incessante de afirmação e adrenalina. Não conseguia largar seu emprego de técnico de enfermagem em.um P.S. Municipal porque amava a correria do lugar. Já ele não era promovido na loja e não recebia comissões maiores por sair mais cedo para buscar a menina na creche e estar sempre envolvido com as atividades da igreja. Que raiva que sentiu quando comentou isso com seu pai e ele depositou uma quantia equivalente a dois salários mínimos na sua conta e continuou a fazer todo mês. Quando foi bufando devolver, ele recusou e ainda deu ordem (deu ordem!) para aceitar:
-"Você não pode cobrar do seu marido que ele seja outra pessoa. Você só pode cobrar isso de si mesma."
O velho estava certo. Mas o dinheiro estava todo guardado em uma poupança. Se recusava a usá-lo
A merda hoje foi ter conhecido o D. A estória que ela leu no prontuário não saia da cabeça. O cara vem de escola pública e passa em faculdade pública, começa a fumar crack com o pai, o irmão e o tio, vai morar com a mãe, faz curso de auxiliar de enfermagem, passa em outra faculdade pública na área, a faz trabalhando, casa, tem uma filha, arranja uma amante, passa em um concurso público, passa por mais seis internações, mantém o emprego, a mulher, tenta se matar quatro vezes, tem surto psicótico. Mas com tudo isso ela se sentiu do lado de uma pessoa de verdade. Tudo era paixão, aventura, loucura. Nada dessa paz de cemitério que ela vive com apenas 32 anos.
Ela chega em frente do portão da sua casa. Antes de acionar o portão elétrico ela se matrícula, através do celular, no que será a sua sétima especialização. Dependência Química.