Capítulo II - Um Barquinho

Primeiro um pingo ralo, tímido, depois outro, mais grosso e pungente, seguidos de tantos outros, igualmente molhados e frios, vieram encontrar, no mesmo banco de praça, o corpo mal dormido e duramente acomodado de Luiz. A aurora se insinuava já no horizonte cinzento, visível nos espaços entre os edifícios empresariais e residenciais da outra margem da Avenida Governador Agamenon Magalhães; mas não se tratava daquela aurora de dedos rosáceos das manhãs homéricas, senão daquela de faces abatidas e chorosas das lamentações do profeta Jeremias. Luiz já não dormia então; ele deixara-se ficar deitado, imóvel, sendo lavado pelas águas que nuvens pesadas faziam descer sobre Recife. E nessas águas que desciam dos céus, Luiz percebia algo de diferente das do Capibaribe, aos braços das quais, no dia anterior, entregara-se como um cachorro que depois de levar pancadas do seu dono, vai deitar-se aos seus pés, esquecido rapidamente dos maus-tratos recentes. Ele percebia que essas águas do alto tocavam as suas carnes quais estocadas de canivete e não como afagos de mãe, mas as aceitava sem reclamar, embora elas até lhe doessem.

Talvez ele tenha ficado assim, indiferente, exteriormente apático, por um espaço de meia-hora, e quem o visse desse jeito, sem se mexer, sem esboçar nenhum ímpeto de fugir ao aguaceiro, quiçá pensasse que ele estivesse morto ou quase isso. Mas Luiz vivia ainda. De repente bufou um vento forte, vindo do leste, que fez a copa das árvores da Praça do Derby vergar violentamente; então um frio intenso golpeou as carnes de Luiz, fazendo-o se arrepiar todo e instintivamente se encolher, tomando ele a forma de um feto, de um abortamento, no seu banco de praça. Nesse instante, às águas descidas do céu juntaram-se as lágrimas de Luiz, misturando-se com elas, nelas se perdendo, escorrendo das suas encovadas faces direto para o chão de terra empapada, onde se sumiriam para sempre. O frio intensificado pelos seus andrajos ensopados castigava o seu corpo por fora, enquanto, por dentro, a fome, a fome de véspera e antevéspera, espremia, pisava, esmagava, sem trégua, as suas tripas.

Fez-se estio; por entre as nuvens de chumbo, passageiras, uns raios de sol, esmaecidos, começaram a passar, a vencer pouco a pouco a tristeza dessa aurora recifense com ares invernais. Pelos galhos das mangueiras, dos oitizeiros, das palmeiras imperiais, as jandaias, os sabiás, os canários-da-terra estralavam em cantos alegres, enquanto nas brechas das cobertas das paradas de ônibus arrulhavam os pombos, os temidos pombos, deixando sempre alertas contra as suas imprevidentes esguichadas de fezes, os transeuntes todos. Luiz se pôs de pé e com as costas das mãos procurou desafogar os olhos cansados; em seguida, tirando a camisa, ele a torceu para tornar a vesti-la um pouco menos encharcada; e foi caminhando para os lados do bairro da Boa Vista.

Desta vez Luiz estava senhor das suas pernas; foi conscientemente que ele se pôs para a Praça Maciel Pinheiro, onde voltou a encontrar os mesmos companheiros de miséria com quem estivera no dia precedente. Ontem ele até rejeitara uma e duas vezes a oferta de cola para cheirar, mas hoje ele a procurou decididamente; ele pediu-a tenazmente; ele tomou-a avidamente em suas mãos e a cheirou como quem cheira uma rosa recém-desabrochada, como amante que funga gostosamente o cangote da morena dos seus sonhos mais animalescos. Luiz inalou o tóxico odor de cola de sapateiro ao ponto de perder os sentidos por uns instantes, instantes que o roubaram à realidade, à sua realidade, uma realidade da qual, estando sóbrio, não sabia como fugir, mas que agora, entorpecido, esquecia, metamorfoseava em outra, bem melhor, bem mais humana, embora irreal.

Voltou a si. Luiz ainda um tanto perturbado em suas faculdades mentais percebeu que o que experimentara minutos atrás não passava de um sonho vão, de uma quimera, de um lenitivo desesperado para uma dor que não conhecia nem podia sustentar alguma esperança. Levantou-se e rumou para a mesma beira do rio de onde se tinha atirado às águas. Ontem as águas do Capibaribe corriam calmas, brejeiras; hoje elas se atropelavam, furiosas. Luiz notou que os braços de mãe que na véspera receberam o seu corpo tão carinhosamente, agora não o receberiam senão para fazê-lo submergir, desaparecer, aparecer lá longe, depositado em alguma beira de mangue ou praia do mar, apodrecido, roído de siris e peixes; noticiado por algum jornal local como mais um entre muitos casos de desconhecidos que deixaram esta vida para ir a outra, quem sabe gozar felicidades inauditas ou sofrer penas atrozes, como pregam os padres e pastores.

Luiz tinha os olhos fixos nas águas do rio. Uma vontade doida de se atirar nela e sumir agarrou a sua mente e o fez estremecer, mas entre o pensamento e a ação ia uma distância muito grande, embora Luiz já tivesse começado a palmilha-la, hesitante. O barulho do corpo magro de Luiz caindo nas águas barrentas e bravias do rio das capivaras foi suplantado pelo do próprio rio furioso. O corpo de Luiz debatia-se em vão contra as forças titânicas das águas revoltosas; aqui e ali, enquanto era arrastado, ele esbarrava em troncos de árvores; enleava-se em plantas aquáticas; afogava-se. Pensamentos, se os tinha então, concentravam-se todos em voltar para a beira de rio de onde precipitara-se na morte. Luiz arrependia-se; arrependia-se de ter pensado e agido contra a sua própria existência; mas agora era tarde, os poucos instantes em que seu corpo fraco voltava à superfície para logo tornar a afundar não eram suficientes para que ele tentasse se localizar no rio, para que ele sequer lançasse um olhar aos céus em pedido de socorro. Luiz afogava-se de fato. Luiz já não lutava. Luiz entregara-se à morte. Então uns pescadores que o viram atirar-se ao rio o resgataram das águas desacordado e levaram seu corpo para terra firme. Estes o depuseram no chão e curiosos cercaram-no, espantados, querendo saber se ele ainda vivia. Luiz vivia ainda, foi o que um enfermeiro que passava ali perto e que vira tudo (Luiz afundar nas águas do rio, debater-se e ser finalmente resgatado) constatou, enquanto gritava para que alguém chamasse o SAMU.

Luiz abriu os olhos, mas sem conseguir entender o que estava acontecendo a sua volta; via os rostos de gente desconhecida olhando-o de cima, apinhada, e por entre as pernas dessa gente, da banda do rio, via atracado um pequeno barco pintado de azul e branco. Aos poucos Luiz foi recobrando alguma força, o entendimento da sua situação, e contra as ordens do enfermeiro que o socorrera em terra firme, quis se sentar, e se sentou de fato. Seus olhos sempre procuravam o barquinho amarrado bem ali ao lado. Luiz sabia por intuição que fora naquele barco que a sua vida se salvara. Luiz agora era capaz de distinguir bem a estampa de uma santa num dos vidros da cabine do barquinho. Luiz queria saber que santa era aquela; então um dos pescadores que o salvara do rio, disse-lhe:

--- É Nossa Senhora da Conceição.

Davi Felismino de Souza
Enviado por Davi Felismino de Souza em 04/12/2024
Reeditado em 17/12/2024
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