DRA JANAÍNA

Manobrou o carro para colocá-lo em sua vaga demarcada. Era uma das comodidades do cargo que se revelavam necessárias. O índice de roubos de carros e motos na região era assustador e não havia vagas para todos os funcionários. O estacionamento mais próximo ficava a 400m em uma ladeira considerável. Suas pernas de 64 anos e seus pulmões castigados por 42 anos de tabagismo incessante não davam conta do recado. Assim que saiu do carro acendeu um cigarro e o fumou lentamente, apesar de estar atrasada. Era um dos privilégios do cargo que detestava usar, mas hoje se permitia:

"Dez anos hoje! Estaria com 34 anos, poderia estar casado, formado, com filhos que seriam meus netos. Meu Deus, como eu mimaria meus netos! Não, ele foi estar muito louco na frente de um trem da CPTM! Desgraçado! Maldito! Não bastava a vergonha diária que ele me fazia passar, uma especialista em dependência química com um filho que fumava crack e ficava se expondo nas ruas do Centro de São Paulo. Tinha que morrer de uma forma que pairasse para sempre essa dúvida nela e em todos. Loucura ou suicídio?"

Jogou a bituca do cigarro longe e chacoalhou a cabeça. Hoje era reunião de equipe e precisavam dar destino para vários pacientes. Depois tinha que correr para o ambulatório onde era preceptora de uma turma grande de residentes e era bem movimentado. No final da tarde tinha a defesa de tese de Doutorado da sua filha para acompanhar e depois festejar. Se recusava a se entregar a melancolia em um dia como hoje. Subiu no elevador e desceu no segundo andar e seguiu para a porta de aço. Outra coisa que a chateava era essa porta. Colocada aí pelo projeto original quando se imaginou uma psiquiatria para psicóticos, não fazia nenhum sentido em uma enfermaria onde as internações eram voluntárias. Na verdade não faria sentido nem em uma involuntária, na concepção dela. Entrou, os pacientes estavam tomando café na mesa central e alguns nas laterais. Percebeu um diferente, homem de meia idade, comendo dieta para diabético, grande, gordo, provavelmente tem alguma profissão, deve ter estourado o cartão ou ficado uma temporada sumido e o obrigaram a se internar. Percebe que ele também a avalia, não é a primeira internação dele. Entra na sala e todos os psiquiatras e residentes já estão analisando os prontuários.

-"Bom dia, desculpem o atraso. Vamos começar pelos assuntos pendentes. Seu Mario?"

-"Pronto para alta. Já articulamos com o CAPS de referência dele em Mogi das Cruzes. Como sempre eles vão vir buscar e já trarão um novo, que eles ainda não sabem quem é?"

Falou outro psiquiatra fixo da equipe, Dr Marcelo, que a ajudava a tocar o serviço.

-"Tudo bem, eles não tem serviço de pernoite, então não tem como eles garantirem a permanência do cidadão. Acaba vindo o que tem interesse mesmo. É até melhor e eles tem sido leais conosco. Mandam relatório detalhado de cada paciente."

-"Certo, alguma outra previsão de alta para esta semana?"

-"Nenhuma chefe, todos com menos de dez dias de internação. O bom que todos estão evoluindo bem. Menos a Paloma.

-"Já chegaram os resultados da Ressonância dela?"

-"Já, e com a avaliação do neurologista. Sem alteração de importância. Agora só falta a cintilografia, mas duvido que o resultado que a gente gostaria. É algum tipo de psicose conversiva ou esquizofrenia"

A Doutora deu um suspiro. Esse era um caso complicado, que devia ter sido recusado logo que foi passado as condições da paciente. Mas quem na vida não deve um favor, ou pode precisar de um algum dia? Ia dar por encerrada esta primeira parte da reunião, mas se lembrou do paciente novo.

-"Douglas, você que fez a admissão do novato, não foi? Como ele é?"

-"Hipobulímico, respondia quase com monossílabos, não demonstra a menor esperança com o tratamento, diferente do habitual não responsabiliza ninguém pelo seu uso. Detalhe interessante, praticamente exigiu que não fosse contado a ninguém que era enfermeiro. Tem família, mas segundo ele não há condição de retorno ao convívio com eles. Usuário principalmente de crack, e de álcool e tabaco quando quando fuma. Veio com uma prescrição pesada de Mogi, 200 mg de Sertralina de manhã, Três carbamazepinas durante o dia, 300 mg de quetiapina a noite e 4 mg de clonazepan também a noite. Mantive por enquanto."

-"Nossa! Interessante. Bem, vocês se debrucem em cima dos seus pacientes que eu vou passar visita na Clínica e depois a gente discute os casos com mais profundidade."

Saiu da sala e foi até o posto de enfermagem filar um café e, como sempre, Dona Raimunda já tinha um quentinho esperando por ela. Fez alguns comentários genéricos, perguntou como foi o clima da enfermaria na semana e por fim chegou ao assunto que lhe interessava, o novo interno:

-"Doutora, ele é muito estranho! Primeiro já chega exigindo que a gente não conte para ninguém que ele é enfermeiro, que quer ser tratado igual a qualquer outro paciente. Depois eu levei ele para o quarto, já tinha passado a hora do almoço, ele ficou quase uma hora ajoelhado rezando, do pessoal da tarde ficar preocupado dele ter um treco. Aí que ele foi tomar banho, comer, tomar medicação. Hoje acordou, rezou um tempão, tomou o café e a medicação e voltou para a cama. está lá lendo a Bíblia. Santo desse jeito não era prá tá aqui, não é doutora?"

Ela simplesmente fez um sinal afirmativo com a cabeça. Saiu com seu caderninho de anotações e foi indo quarto por quarto realizando as consultas com os pacientes. Ficou bastante tempo com a Paloma, observando os auxiliares encaminhando ela ao chuveiro, depois a trocando, com uma caneta de luz observou os movimentos oculares dela. Depois disso desceu até o estacionamento e acendeu um cigarro. Estava usando toda a influência que tinha para conseguir um tratamento de ECT para ela, mas os hospitais que realizavam estavam com todas as suas enfermarias lotadas e não conseguia ambulância do próprio hospital para levar e trazer pelo tempo de recuperação pós anestésica. Ia tentar uma maluquice farmacológica que talvez fizesse a pobre sair sair do estupor para o surto psicótico, mas era a opção que sobrava.

Voltou a enfermaria. Restavam dois pacientes, Marcos e o novato. Estavam ambos em suas camas, o primeiro dormindo e o outro lendo a Bíblia. Acordou-o e logo o outro se levantou, marcou a pagina que estava lendo, deixou-a na cabeceira e fez menção de sair.

-"Oh irmão! Pode ficar de boa aí. Aqui não tem nenhum segredo não.

-"Tem certeza, para mim não tem o menor problema, eu fico lá na sala um pouco, depois eu volto.

-"Não, pode ficar aí irmão!

-"Então tá bom. Você que manda."

Marcos rapidamente veste uma camiseta.

-"Bem Marcos, como você está se sentindo aqui. Tem sentido vontade de beber, de usar drogas, irritação?

-"Não Doutora, pelo contrário. Não sei o que vocês estão me dando, mas eu estou com ojeriza de álcool e cocaína. Não quero usar essas porcarias nunca mais. O que eu sinto falta de verdade é de fumar, doutora. Muda as regras, deixa a gente fumar pelo menos uns três cigarros por dia."

-"Não tem como, estamos dentro de um ambiente hospitalar, no andar de cima aqui é a maternidade. Sem chance. Você vai ter que se aguentar com o adesivo. Você consegue, são poucos dias. Como está o seu sono?"

-"Melhor impossível doutora. Durmo a noite inteira e ainda dou uns cochilos a tarde."

-"É mas não é para dormir tanto assim. Acho que vamos diminuir um pouco a sua medicação."

-"Não doutora, não faz isso não! Eu durmo bastante porque não tem o que fazer. Na rua já é outra estória, a gente tem a correria do dia a dia, as obrigações. Em time que está ganhando não se mexe doutora!".

-"Quanto a isso mesmo, já tem planos para quando sair daqui? É daqui a 10 dias mais ou menos."

-"Vou passar óleo de peroba na cara e voltar a frequentar o CAPS que eu ia. A senhora soube, né? Que no dia que me trouxeram para internar eu fiquei desfilando pelado lá. Depois tenho que falar com a minha mãe e ver se ela me deixa morar com ela de novo. O barraco onde eu moro hoje é bem na frente do movimento, com meu histórico é difícil não se envolver. Depois é ir atrás de serviço.".

-"Está certo. Não vamos mexer na sua medicação por enquanto. Mas tenta não dormir tanto durante o dia. E o seu colega de quarto, tem dado trabalho?"

-"Que nada! Aí irmão, conta prá doutora! Dei a maior sorte! O resto do povo daqui é tudo moleque, acha que a vida é bolinho. O irmão aí é na dele, troca um ideia da hora. Mó sossego."

-"Então está bom. Amanhã o plantonista vem conversar com você de novo, tudo bem?. Então D, como eu já disse para o seu colega, meu nome é Janaína, eu sou coordenadora da equipe de psiquiatria aqui desta enfermaria e eu gostaria de saber um pouco da sua estória "

Neste ínterim dela se voltar para a outra cama, Marcos já havia saído do quarto sem ela perceber.

-"Por onde eu começo. Uso drogas desde os 17 anos. Desde os 18 tento parar. Igreja evangélica, faculdade. Fumo crack desde os 19, aos 21 ingressei em NA., mas começou a funcionar depois da terceira internação em uma psiquiatria padrão e eu começar a estudar para ser auxiliar de enfermagem e levar a sério a programação dos 12 passos. Consegui entrar em uma faculdade renomada pública e manter a sobriedade. A ideia era terminar a faculdade e ter uma profissão que me permitisse ir para onde eu quisesse, sem raízes em lugar nenhum. Terminei casado, com uma filha, um serviço público e uma amante. Foi no movimento de: "Se você sair eu me mato" dos dois lados que eu acabei perdendo minha sobriedade"

-"E nunca mais a recuperou?"

-"Curtos espaços de tempo. O maior foi oito meses antes da pandemia, de licença do trabalho, foi voltar a trabalhar começou tudo de novo"

-"Me responde uma coisa. O pessoal da enfermagem me passou que você não quer que ninguém saiba que você é enfermeiro. Porque?"

Ela já havia se sentado na cama para ficar mais próxima. Ele estava sentado na posição de Buda. Sem que a fisionomia dele mudasse, começaram a descer lágrimas solitárias pelo seu rosto. A Dra Janaína, pela primeira vez em muito tempo, ficou sem ação:

-"Eu já fui muito arrogante, muito! Tive internações onde eu fui o pesadelo dos técnicos, meu quarto se tornou consultório. Outras eu esfregava meus conhecimentos na cara dos monitores. O que me adiantou? Fui arrogante com minha mulher, fazendo questão de eu tirar o dinheiro do meu salário, com meu filho, com minha mãe. Porque eu era "O Enfermeiro"! Não, eu não sou nada. Eu sou um nóia precisando de tratamento, que não tem a menor ideia do que vai fazer da vida, e que a única coisa que sobrou foi a confiança em Deus. O que está ótimo, porque quando eu cheguei nem isso eu tinha."

A doutora se levantou rapidamente, o cumprimentou e deu um lacônico: "Mais tarde conversamos mais". Saiu como um foguete da enfermaria direto para o seu carro e, desrespeitando sua própria regra, acendeu um cigarro dentro dele, as mãos trêmulas. Desta vez eram dos olhos dela que saíam a lagrimas. Começou a bater no volante com as duas mãos:

-"Maldito! Maldito! Maldito! Porque Ricardo você tinha que fumar crack? Eu sei que eu errei te internando involuntariamente por quase um ano, depois fazendo isso de novo por mais seis meses, depois te mandando para outra cidade, mandando dinheiro toda semana para você não aparecer e manchar minha reputação. Impondo não conversar com você enquanto não buscasse reabilitação. Eu fui arrogante, tão arrogante. Não foi a toa que seu pai foi embora depois que você morreu"

Ficou no carro uns vinte minutos e fumou uns três cigarros.

Diogenes R Cardoso
Enviado por Diogenes R Cardoso em 04/12/2024
Código do texto: T8211597
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