Onze e Suas Memórias

(Ao meu avô querido.)

Sua mão quase trêmula fazia questão de puxar os cabelos de Onze num gesto de carinho que sempre vinha acompanhado de um sorriso cor de rosa. Onze gostava de cantar para ele uma cantiga divertida...

“Eu vi uma barata na careca do vovô,

Assim que ela me viu, bateu asas e voou...”.

Vovô Careca era daquele tipo que sentia prazer em ter seus 23 netos em volta de uma mesa para comer (ou obrigar a comer) o que chamavam de piscina de feijão. Para acompanhar, uma banana. Se algum neto não comesse tudo, lá vinha um sermão daqueles e, antes de jogar a comida fora, tinham – pasmem – que beijá-la, pois “comida é sagrada, menina!”, dizia. A mãe de Onze conta que Vovô Careca gostava de pegar seu caminhão para fazer compras. Voltava com sacos imensos de laranja, batata e feijão. Talvez esse tenha sido seu maior prazer: mesa farta. E depois do almoço, nem pensar em ler ou deitar com a cabeça baixa. Ele ignorava qualquer descoberta da ciência que se achasse no direito de autorizar seus netos a praticar tais atitudes.

Cada neto tinha o seu número, conforme ordem do nascimento – como as filhas do Sílvio Santos – e ai daquele que esquecesse o seu. Para ele isso tinha um valor incrível, era como se deixassem de ser alguém e passassem a ser apenas netos. Sagrados netos. Ele agradecia sempre a Deus dizendo-se abençoado, pois nenhum neto nasceu com imperfeição ou ‘deu pra coisa ruim’ – afinal, numa família tão grande... – não cessava de repetir.

Às seis da tarde desligava-se tudo em casa, ninguém via tv, cozinhava, ria ou chorava. Era hora da Ave Maria. Mas às sete da noite parecia mais sagrada ainda: Adorava os telejornais sensacionalistas e resmungava a cada injustiça apresentada. No horário nobre, os netos não podiam nem fungar que já ouviam um shiiiiiiiiiii!!!! Que indicava ‘silêncio absoluto’. Trocar de canal, nem na propaganda. O pinguelete estava sempre em poder Dele. Pinguelete era como costumava chamar o seu amigo controle remoto, que tinha lugar cativo entre as almofadas do lado esquerdo do sofá, conhecido como ‘Lugar do Vovô’. Enquanto via tv, gostava que Vovó Ia esquentasse seus pés e explicasse tudo que acontecia nas novelas, pois mesmo com a tv no maior volume, ele não conseguia escutar direito.

Palavrões? Muitos. Dos mais cabeludos àqueles que só faziam divertir. Na verdade, gostava de acarinhar com palavras ‘feias’. As vezes que ele ia buscá-la no colégio, Onze sentia um misto de vergonha (pelos palavrões, claro) e orgulho de ser recebida na porta da escola por suas mãos fortes (apesar de quase trêmulas) que apertavam seu pulso. – Hei, olha o carro!! – dizia ele com extrema agitação ao atravessar a Alameda São Boa Aventura.

Fazia de tudo por aqueles netos, mas não tolerava desobediência. Os números mais espertos tentavam escapar das chineladas, que só alcançavam seus alvos depois que Vovô Careca já estava cansado de correr pela Vila Botafogo todinha atrás dos sem-vergonhas.

Foi no nono ou décimo aniversário de Onze que Vovô Careca mudou-se para a Vila que logo depois passou a chamar-se Botafogo. A escolha do nome é facilmente explicada pelo amor que ele tinha por seu time. Alguns moradores da Vila fizeram pirraça e tentaram mudar para nomes de outros times... Em vão. O Vovô era mesmo muito insistente.

Quanto ao amor pelo Botafogo, esse foi passado aos seus filhos e netos. Torcia vorazmente pelo time e todos que gostassem dele deveriam torcer também. Poucos foram os que tiveram coragem de trocar de time; sim, trocar, porque um Garcia já nascia botafoguense.

Além do futebol, era grande apreciador dos jogos. Sena, loto, bicho e tudo mais que pudesse lhe render algum trocado. Toda a tarde ia fazer seu joguinho de mãos dadas com o neto que estivesse disponível para desfilar pelo bairro.

Ah! Não se pode esquecer da capacidade que tinha de produzir marchinhas: ─ Isso aqui dá dinheiro! ─ dizia depois de cantá-las ao seu público constituído de amigos, vizinhos e parentes. Era realmente um artista. Todos adoravam suas alegres apresentações. Só não vou reproduzir nenhuma música porque Onze não autorizou. Ela sempre diz que ‘alguém pode copiar... sabe como é, né?’. Normalmente a cantoria acontecia nas festas da família.

Festas!!! Cada uma com um sabor diferente. As mais marcantes foram o seu aniversário de 80 anos e suas Bodas de Ouro. Estas foram feitas por uma espécie de mutirão: seus dez filhos (mais filhas do que filhos) uniram-se de todas as formas para torná-las reais. Mas qualquer que fosse a festa, lá estava ele chorando. Sim, ele chorava em todas. Era muito emotivo e ficava feliz com qualquer comemoração. Nos muitos Natais, um dos tios de Onze vestia-se de Papai Noel e distribuía presentes. Onze lembra-se do último Natal que Vovô participou. A meia-noite filhos e netos deram-se as mãos com incentivo dele para agradecer por estarem juntos naquele dia.

Quase quatro anos... e tantas memórias ainda vivas. Mas Onze não quer esquecer, Onze não pode esquecer aquele que a ensinou a viver. Algumas manhãs ela acorda, respira profundamente e, como ele gostava de fazer, agradece a Deus por ter tido um exemplo, não de homem perfeito, mas de homem que, independente das circunstâncias, sorria. A única coisa que ela pede é que um dia também tenha uma Onze para lembrá-la com carinho.

Dalú.

Dalú
Enviado por Dalú em 17/01/2008
Reeditado em 17/01/2008
Código do texto: T821152