Distância de segurança

Amigos de verdade são pessoas capazes de suportar a sua felicidade, com sinceridade - esse foi o pensamento que ocorreu à Carlos diante de uma decepção com um amigo. Essa frase, lida em um texto na internet, estava fazendo total sentido naquele momento.

Há poucos meses antes desse fatídico dia, ele confidenciou à Miguel que havia finalmente se organizado para publicar seus escritos. Eram amigos e conviviam quase que diariamente há mais de uma década. Não eram apenas colegas, trocavam confidências . Diante da decisão de Carlos, a reação de Miguel foi de surpresa e aparente incentivo. Nos próximos dias e meses, Carlos se envolveu, muito entusiasmado, com a revisão e demais etapas de finalização do livro - o que inclusive era muito natural de se esperar.

Durante esse processo, conheceu novas pessoas com as quais desenvolveu afinidade, o que era ótimo. Carlos se viu ainda mais motivado e por que não acrescentar - realizado. Isso despertou sentimentos estranhos no amigo porém, Carlos não notou isso de imediato. Algo muito comum: não percebemos o que está tão próximo. Em muitas ocasiões, só enxergamos melhor quando tomamos certa distância. Miguel também gostava de escrever, mas nunca tomou a decisão que Carlos tomou. Isso incomodou Miguel.

A vida não precisa ser uma arena de competição - muito menos no terreno dos afetos. Infelizmente, algumas pessoas sentem que a felicidade do outro pode anular a sua própria.

Mas a verdade nunca fica oculta por muito tempo. Carlos, naquele dia, ao compartilhar uma notícia ótima sobre o lançamento de seu livro com Miguel, percebeu algo bem contraditório, incompatível com uma amizade sincera. Carlos enviou um áudio a Miguel pelo Whatsapp, lhe contando alguns detalhes importantes sobre o lançamento . Miguel simplesmente ouviu e não respondeu. Carlos pensou: ele está ocupado, normal. Entretanto, a resposta sobre aquele áudio nunca aconteceu. Miguel não se manifestou. Quando se encontraram pessoalmente, Miguel agiu como se não tivesse ouvido, como se a conversa não houvesse acontecido. Logo ele, o mesmo Miguel que em várias ocasiões lhe disse que não suportava indiferenças e que por mais ocupada que fosse uma pessoa, quem se importa e lhe considera, sempre encontra um tempo na agenda - que tudo são prioridades.

Carlos então percebeu a realidade. Percebeu inclusive, que esse não foi o único sinal. Ao puxar pela memória se recordou de situações semelhantes, embora não tão explícitas quanto essa. Carlos era a parte que sempre cedia, que tudo fazia, que sempre ouvia. Manteve a cordialidade, e prometeu para si mesmo que caso Miguel precise de sua ajuda, estará pronto a ajudar. Mas contar seus planos, sonhos ou realizações ou mesmo suas angústias? Não mais. Não apenas para Miguel, mas passou a filtrar melhor sua intimidade.

Isso talvez seja um sinal de amadurecimento. Nunca essa frase lhe fez tanto sentido: "amigo verdadeiro não é somente aquele que está ao seu lado nos momentos difíceis". Isso também é raro. Mas vamos combinar que, algumas pessoas, parecem se alimentar morbidamente da tristeza alheia. Não por se compadecer de fato pela dor ou por se preocupar de fato com você. Elas se alimentam da sua energia, ouvindo seus problemas e aparentando estar do seu lado, mas como uma espécie de abutre. Essas pessoas simulam querer lhe ver bem, mas ao menor sinal de destaque positivo em sua vida, revelam-se como são. Pessoas assim precisam sentir pena para reforçar a superioridade que acreditam ter sobre os demais - não conseguem sentir admiração.

O exemplo de Carlos e Miguel está longe de ser o primeiro ou o último. Nos serve de lembrete e reflexão: quem são as pessoas à sua volta, capazes de suportar suas realizações, sem invalidá-las ou diminuí-las?

Carlos aprendeu a lição. Segue discreto, porém sem se fechar. Seu "feeling", segue cada vez mais aguçado. Sabe da necessidade de não se fechar, mas aprendeu a conviver, sem expressar seus sentimentos o tempo, a qualquer um. Da maioria, hoje ele mantém uma distância de segurança. Na medida certa.