Está Fantasiado de Cocô?
Está Fantasiado de Cocô?
Quando estudava filosofia na Universidade Federal do Paraná eu gostava de sentar em um dos bancos do pátio e observar os indivíduos que por ali passavam.
Quase sempre lia algum texto de meu interesse, raras eram as vezes em que lia algo passado pelos professores na sala d’aula. Acreditava e ainda acredito que aprendemos mais quando estudamos o que nos parece interessante. Isso, claro, quando temos interesse por algo. Caso não tenha, vale a pena estudar qualquer assunto, preferencialmente o tópico “curiosidades”, livros que apresentem um pouco de cada assunto. Quem sabe assim encontramos um que nos desperte o desejo de nos aprofundar e dedicar nossas vidas. Talvez encontramos até uma futura profissão.
Certa vez sentei ao lado de um rapaz que me deu um breve “oi” e se manteve em silêncio. Após alguns minutos, um jovem veio em nossa direção, com um sapato marrom, uma blusa marrom, uma calça marrom, jaqueta marrom, boina marrom e uma pasta adivinhe? Isso mesmo, marrom.
Eu olhei para ele, algo chamou minha atenção, mas não sabia o que. Só percebi quando o amigo dele, o rapaz que estava sentado ao meu lado, deu uma risada e falou:
-Pô bicho, você está fantasiado de cocô?
Caímos na gargalhada, nós três. Mesmo sem eu ser conhecido deles, era impossível não participar daquele momento descontraído. Eles levantaram e foram embora conversando. Eu fiquei ali, sentado no banco, imaginando o jovem em frente ao espelho colocando peça após peça de roupa para combinar. E depois que vemos algo, é difícil desver. Quando vejo alguém vestido completamente de marrom sempre lembro desse momento.
Alguns dias depois, eu com meu tamanho de 1,82 metros de altura, cabelos castanhos, branco (onde tem tecido, onde o sol pega é bronzeado, sem roupa é um degrade engraçado) caminhava pelo centro da cidade. Achei interessante a fachada e entrei em uma livraria. Um senhor usando uma camisa branca era o dono dela. Ele me olhou e falou:
-Boa tarde, tudo bem? Você é de origem alemã?
Lembro bem que eu era meio vagabundo na época, tinha muito tempo livre. Não trabalhava, no máximo fazia estágio para ganhar alguns trocados. Mas não tinha nenhum grande gasto, tampouco ambições. Era apenas estudo e esperar o próximo dia chegar. Uma tranquilidade que me deixava pensar muito nas teorias, mas pouco em práticas. Hoje a teoria se mostra verdadeira ou falsa, muito melhor com as obrigações do dia a dia. É possível testar o que é real e o que é ficção. Respondi:
-Não, tenho descendência polonesa e italiana.
-Tem namorada?
-Tenho sim. – Achei meio estranho aquele senhor perguntar isso, mas eu era curioso para com o que é estranho. O homem fez a pergunta que me revelava um pouco mais sobre suas intenções:
-Ela é de origem alemã ou polonesa?
-Não, por que quer saber?
-É importante manter a linhagem pura.
Eu não acreditava no que ouvia. Um racista! Nunca tive a oportunidade de conhecer um antes. Então provoquei o homem com a realidade:
-Ela tem um avô negro e meu avô era negro com índio.
Um breve silêncio. Apesar de muitos me conhecerem e conhecerem minha namorada, agora esposa, poucos sabem que somos descendentes de negros. O homem refletiu um pouco e falou:
-Muitos negros que foram trazidos da África eram de descendência zulu. Esses eram homens de sangue puro.
Quis rir. Vale tudo para ter o sangue puro. Ele me falou um pouco mais sobre os judeus terem fundado o Brasil e como desde o inicio roubavam a nação. A mesma ladainha para ter um bode expiatório. Na época o livro do bigodudo não tinha permissão para venda. Perguntei a ele:
-Já leu minha luta?
-Sim, eu tenho a venda esse livro. Quer um?
Um livro proibido? Se eu quero? Um estudante de filosofia que queria conhecer o máximo que poderia?
-Claro que eu quero.
Era uma edição não autorizada de fã. A capa tinha a imagem do zé do bigode em seu uniforme militar olhando para o horizonte. Era meio cafona. Perguntei para o senhor:
-Você é descendente de alemão?
-Sim, meu pai viveu na Alemanha durante a segunda guerra mundial e quando acabou fugiu com nossa família para o Brasil.
Era um racista de linhagem pura! Nunca mais encontrei um racista de linhagem pura em minha vida. Ele falou mais algumas coisas pouco interessantes, na verdade não lembro, por isso sei que devem ter sido sem sal.
Nas semanas seguintes fui lendo o livro aos poucos. Era final de ano, me ocupava mais com o natal e festas do que em saber o que um tirano escreveu para agradar seus fãs. É um livro que não te mostra conclusões lógicas, apenas agrada quem já acredita na teoria nazista. Mas fui lendo aos poucos. Como o inicio é chato! Fala sobre toda a situação europeia daquela época pela visão do partido. Não se trata de ser verdadeiro ou falso, se trata de leitura desagradável, tediosa. Tem livros que falam a verdade e também são tediosos.
O restante do livro continha meias verdades sobre diversos assuntos, uma análise sociológica, a teoria de Darwin misturada com uma genética esdruxula, no sentido de bizarro mesmo. Meias verdades sobre povos que criam, copiam e parasitam. Balelas. Gosto de pensar que, assim como os vira latas, eu com minha mistura de raças tenho uma genética que resiste a mais doenças e se adapta melhor ao ambiente. E nada como a experiência real em nossas vidas para destruir uma teoria falsa: Quando servi ao exército, quantos branquelos foram fracos e quantos negros foram fortes. E vice versa.
Já aquele senhor branco, de cabelos brancos, de blusa branca, era a segunda vez que vi alguém vestido de cocô.
Com boa memória, Ludwick Bolach.