ENORME VERGONHA

Antonio nasceu numa família pobre. Desde pequeno conheceu as limitações por causa do dinheiro sempre menor do que as necessidades básicas e tendo que deixar a realização dos desejos, nem sempre supérfluo, para depois.

Mas isso em vez de torná-lo uma pessoa derrotista e se sentindo eternamente vítima do sistema, fez com que desejasse evoluir socialmente para não ser porteiro de prédio de luxo como seu pai ou faxineira como a sua mãe que, apesar dos serviços considerados menores, sempre se portaram com a dignidade das pessoas honestas.

Seus pais sempre disseram que estudar era o melhor caminho para a mudança definitiva, então ele e seus dois irmãos sempre foram os primeiros de classe.

Sem qualquer dificuldade, Antonio foi o aluno laureado no curso de Direito, outra vez na Escola Superior de Magistratura e obteve a nota máxima no concurso de juízes.

Os seus irmãos também se notabilizaram tanto nos cursos superiores quanto em postos de trabalho fora do país.

A vida de privações havia ficado para traz, mas a cor da pele se manteve como motivo de preconceito, para não aceitação em quase todos os lugares, até que alguém propagasse os títulos do agora poliglota, juiz de direito e doutor por universidades estrangeiras.

Essa mudança de comportamento, deixa claro que o nosso preconceito de cor, é bem menor que pelo nível social.

A cor da pele é apenas o detalhe que mais chama a atenção, mas que desaparece quando são proclamados os títulos, as posses ou o saldo bancário.

Desde muito jovem, Antonio desenvolveu o gosto pela mecânica que mais tarde se transformou na sua principal diversão e ocupava as horas vagas na manutenção e zelo com o seu fusquinha 59, branco com detalhes cromados.

Os pais continuavam morando na mesma casa do Ibura onde ele fora criado, mas como todo recifense que se preza, Antonio comprou um apartamento em Boa Viagem e, quando surgiu a vaga para juiz da capital, trouxe a mulher e filha para o apartamento.

Apesar da novidade de morar na capital, das idas para a praia e para os locais de diversão que não existiam no interior, Antonio manteve a rotina de, em todos os sábados à tarde, ir “lamber” o fusquinha.

Distraído pelo esmero de passar cera e polir a pintura do carro, nem sequer notou a senhora elegante que parou o carrão na vaga ao lado da dele.

- Moço, leve essas compras para o 605.

Antonio não imaginava que a ordem era para ele e continuou o serviço.

- Hei moço! Eu estou falando com você. Leve essas compras para o 605.

Achando graça no inusitado da situação, Antonio não retrucou. Pegou as sacolas e foi levar as compras. Quando voltou, o carro não estava mais lá.

Dias depois, houve a reunião do condomínio e a mesma senhora mandou Antonio dar a sua cadeira para uma pessoa que estava com ela com a frase seca.

- Vá para outro lugar.

A fim de poupar desentendimentos, Antonio obedeceu e sentou na fila imediatamente atrás.

Durante as discussões, Antonio deu a sua opinião e a mesma senhora, horrorizada, perguntou ao síndico.

- Desde quando funcionários podem dar opinião?

- Ele não é funcionário, é morador.

- E ele tem procuração do proprietário para participar das deliberações?

- O Dr. Antonio é juiz de direito e o proprietário do apartamento de cobertura no bloco da senhora.

Ouviu-se um oh, prolongado na plateia e algumas risadinhas à socapa...

- Eu não fui informada. Por que ele não me disse quem era?

- Nem as pessoas, nem o condomínio estão obrigados a lhe fornecer informações quem elas são ou o que fazem das suas vidas...

Por alguns instantes, o mal-estar tridimensional se instalou na sala e pouco depois, muda e cabisbaixa, a moradora preconceituosa e arrogante se retirou.