A Miséria Humana
A Miséria Humana
Diz o sábio: “Meu espelho d’água, como foi quebrar? Vazou sua água e não reflete mais a luz. Era belo, mesmo com os moradores de rua a se banhar. E agora, o que restou senão apenas a pobreza descalça em seu interior?...”
A experiência da miséria.
Trabalhei como pintor autônomo. Uma moça me telefonou para deixar seu quarto mais alegre. Ela havia trocado a janela antiga e as paredes estavam feias com reboco aparente. “Quero deixar o quarto lindo...” Foi o que ela disse na ligação.
Eu estava com todas as ferramentas necessárias para a pintura em meu carro. Pela manhã, cheguei em sua casa para fazer o orçamento final e já começar o trabalho. Sempre que possível olhava o local dos serviços antes de passar valores, para confirmar o que me foi pedido, para não gerar confusão ou mal entendidos. Se o serviço fosse o pedido e o cliente concordasse com o valor que eu cobrava, começava a trabalhar. Sempre deu certo dessa maneira. Evitei vários serviços que me pareceram ruins ou que exigiam gambiarras e iriam me dar dores de cabeça no futuro. Quando não fazia um orçamento no local me dava mal.
Cheguei. Antes de cruzar a porta de sua casa sentia um cheiro forte de urina de gato. Quando entrei estava tudo escuro, sem nenhuma luz no corredor que levava da sala até o quarto, passando pelo banheiro. Entrei no quarto e que surpresa. Em contraste com a casa, ele estava vazio, com um piso laminado de cor clara e com uma grande janela que deixava entrar muita luz. Minha intuição dizia para sumir após o orçamento, mas o quarto dizia fique. Ele passava uma sensação de tranquilidade, talvez pela comparação com o restante da casa. Eu disse qual seria o valor da pintura, a moça concordou. Falei que iria até o carro pegar as ferramentas para começar a trabalhar. Ela quis ir junto. Durante o caminho me perguntou se eu não iria embora. A moça não me falou, mas acredito que ela já teve essa experiência de abandono, o que seria muito sensato devido ao estado da casa. E sim, eu pensei por um momento em fugir, foi quando estava cruzando novamente o corredor. Mas quando ela fez isso, me seguiu para evitar uma fuga, fiquei com pena. Decidi que iria pintar.
Trabalhei dois dias ali. Sozinho no primeiro dia. Era um quarto calmo e a cada demão de tinta ficava mais belo. Quando entrava ou saia, fazia rápido e de cabeça baixa. Nem queria saber o que havia na casa, só o cheiro já era insuportável. Mas entrando no quarto, era tranquilo. Nunca amei tanto sentir o forte cheiro químico da massa acrílica. E o cheiro da tinta era maravilhoso afugentando o fedor dos outros cômodos.
Ela me disse que estava mudando de vida, começando pelo quarto. Depois arrumaria o restante da casa, pois houve uma denúncia de um vizinho. Denuncia: Ela era acumuladora de lixo. Moravam ali ela e sua mãe. A mãe estava, por incrível que pareça, desde o início da pintura na sala, em uma poltrona, quieta. Quase não a percebi. Uma ou outra vez ouvi sua voz longe pedindo para sua filha comprar algo para comer. Não seria de bom tom descrever como essa moça era. Direi apenas que seu olhar é encontrado em tantas pessoas que são tristes. Pessoas que tem breves momentos de alegria antes de voltar a solidão, há algo que perderam e jamais recuperarão.
Para acabar mais rápido com o serviço, no dia seguinte, chamei um amigo para me ajudar. Quando chegamos no quarto e a moça saiu, ele baixinho me disse:
-Meu Deus do céu, que casa é essa cara? Você falou que estava bagunçada mais isso está em outro nível!
Ele queria ir embora. Convenci a ficar para me ajudar, afinal era só não sair do quarto. Ele aceitou, meio relutante. Me disse que estava com medo de pegar uma doença. Eu nem havia pensado nessa possibilidade. Mas pelo estado da casa era possível. Na verdade, no segundo dia nem me importava muito a bagunça do corredor. Nós nos acostumamos com o tempo a tudo. É assim que tantos perdem a dignidade, aos poucos, dia após dia.
Em certo momento, a moça abriu a porta do quarto, essa que deixávamos fechada por conta do cheiro. Ela falou que iria sair com sua mãe para ir em algum lugar fazer sabe-se lá o que. “Sem problemas” respondi. E continuamos a trabalhar. Alguns minutos se passaram e meu amigo me perguntou:
-Você não está curioso para ver como é essa casa?
-Não sei, sim e não...
-Vamos ver...
E ele abriu a porta e começou a andar no corredor. Eu o segui rapidamente. Minha curiosidade que estava adormecida parece ter acordado na mesma hora! Sim! A possibilidade de ver a casa me deixou extremamente animado e curioso, o coração batia forte com o medo de ser pego lutando com a vontade de ver os segredos que haviam naquela escuridão.
E meu Deus! Que conjunto! Primeiro o banheiro que era o cômodo ao lado do quarto. Depois a sala unida a cozinha. A cozinha! Os gatos! A cozinha! Não tivemos coragem de ver o outro quarto, seria invadir em demasia? Nada! Meu amigo falou: “volta para o quarto, só volta...”.
Ficamos em silêncio até terminar o trabalho naquele dia. Acredito que, assim como eu, ele refletia sobre o que viu. A moça voltou e ofereceu um café. A cozinha! “Não, muito obrigado moça”.
No carro, indo embora, ele me falou que seria certo denunciar aquilo. Não era lugar de uma mãe, já com uma certa idade, viver. Esqueça essa ideia, eu disse a ele. Se não for a filha, quem cuidará da senhora? E mais, até que ponto elas não estão em harmonia nesse cenário terrível? Só a filha é culpada?
Ainda voltei no terceiro dia para terminar um retoque aqui, outro ali, coisa rápida. Quando terminei, a moça e eu sentamos em um banco de uma praça que ficava próximo a sua casa. Conversamos. Ela falou de sua vida. Eu de meu desejo que desse certo ela arrumar o quarto, depois o restante da casa. Comentei que meu amigo teve uma impressão ruim, falei sobre a importância de ter um lar organizado. “Busque ajuda”, “imagina se denunciam e te separam de sua mãe”. Não sei até que ponto ela seguiu com seus planos. Até que ponto era culpa de uma ou de outra. Foi o lugar mais terrível que já entrei. Sabe, uma vez um mendigo entrou em um ônibus com sua coberta imunda fedendo a urina e fezes. Ele sentou em um banco do ônibus. Esvaziou o fundo do ônibus. Eu sentaria ao seu lado por toda uma viagem para não entrar novamente naquela casa.
Essa é a miséria humana. Tantos rostos tristes espalhados por aí disfarçando a miséria em pequenos momentos de alegria. O quarto branco cheio de luz com seu chão claro é maravilhoso, principalmente sem o cheiro da tinta. Mas vazio, visitado apenas ao dormir. No restante do dia sentamos ao lado de um mendigo e a alegria é comparada, melhor isso do que aquilo. A casa como um todo é, na maioria das vezes, o que nos resta.
“...Ontem revirei seu lixo, tentando te conhecer. Vi tanto que até agora tento esquecer.”
Com enjoo pelas memorias, de seu amigo Ludwick Bolach.