Entrelinhas: Mário Lobo Zagallo – 13 razões para ser feliz

Escrever este livro tem exigido bastante de mim. Talvez por isso eu me demore tanto em terminá-lo. A questão é que alguns dos temas abordados nestas pequenas anedotas exigem certo grau de maturidade para serem comunicados, maturidade esta que nem sempre penso ter. Mas escrever sobre quem sou e sobre como me sinto se converteu em uma necessidade inescapável; restou-me, preparado ou não, atendê-la. Isso significa, neste caso, aceitar escrever sobre um dos maiores ícones do esporte que tanto amo e fazê-lo dividir o campo com o maior inimigo que já enfrentei em nível pessoal. Chegou a hora de falar de Zagallo. Chegou a hora de falar da depressão.

Mário Jorge Lobo Zagallo, o Velho Lobo, é um dos maiores vencedores do futebol mundial. Nascido em Alagoas em 1931, Zagallo foi campeão mundial em 1958 e 1962 como jogador, em 1970 como técnico e em 1994 como coordenador técnico. Não é preciso mencionar que a história de Zagallo é também a história do futebol moderno e como este desporto se converteu no mais popular do planeta Terra. O que sim, é preciso mencionar é que Zagallo tinha uma fixação pelo número 13!

A soma dos últimos dois algarismos de 1958, 5+8, da 13! O mesmo acontece para 1994! A copa de 1962 foi no chile; Chile tem 5 letras; quando somadas aos últimos dois algarismos de 1962 geram na mais, nada menos que 5+6+2 = 13! A copa de 1970 foi no México. México tem 6 letras. Quanto dá 6+7+0? 13! E por aí vai!

Zagallo perseguia o número 13 e a recíproca parecia ser verdadeira! Também é verdade que, com o pensamento hegemonicamente cartesiano que me caracteriza, sempre achei esse tipo de coisa uma grande baboseira numerológica. Mas isso não importa. O que sim importa é que ao enfrentar desafios (estes que são corriqueiros na prática de esporte profissional), o Velho Lobo escolhia apegar-se às supostas evidências de que algo maior intercederia a seu favor. A questão focal era a escolha, o tipo de escolha que alguém tem que fazer quando enfrenta adversidades e precisa encontrar razões para crer que pode suportar e, e eventualmente, prevalecer. Seria essa a grande lição do Velho Lobo? Se sim, admito que demorei bastante tempo para aprendê-la. Contudo, em meio ao que considero um dos maiores desafios que alguém pode enfrentar, a depressão, creio ter obtido êxito. Deixe-me explicar um pouco melhor.

Depressão rima com erosão. Não apenas pelo som, mas pela maneira como se cria, pouco a pouco, sem ninguém perceber. De repente, uma cratera enorme aparece onde tudo parecia estar bem. No meu caso, os sinais mais perceptíveis da depressão foram percebidos por mim em meados de 2020. Creio que assim como fenômenos geológicos inesperados precipitam efeitos erosivos enormes, a pandemia seguramente contribuiu para que a erosão da minha condição emocional fosse abruptamente acelerada.

Assim, aqueles dias de desânimo, de desassossego, de raiva, de fúria, de apatia, deixaram de ser eventuais, passaram a ser cada vez mais recorrentes. Em média, eu estava me transformando em outra pessoa, alguém mais opaco.

Em retrospecto, noto que as bases sobre quais foi fundado aquele calabouço foram lançadas muitos anos antes. Quando adolescente, lembro-me de sentir muita solidão, sobretudo quando minha mãe esteve gravemente doente. Durante este período, que deve ter durado entre dois ou três anos, eu achava que não tinha com quem contar e vivia em um estado de alerta, maquinando mil planos sobre o que fazer se minha morresse, como seria o relacionamento com o meu pai daí para diante, quem cuidaria da minha irmã etc.

Eu me tencionei e numa mais me descontrai. Ainda que tudo se parecesse a uma grande celeuma, uma personalidade capaz de conter aqueles pavorosos terrores começou a ser tecida na escuridão da noite.

Mas tudo tem um preço. O peso que carreguei comigo naquele momento nunca me deixou de verdade, nem mesmo quando a minha mãe se recuperou, meu relacionamento com o meu pai entrou numa zona de estabilidade e minha irmã se converteu em uma adulta capaz. Esta carga, pouco a pouco, foi degradando minha capacidade de me sentir feliz.

Os sinais, portanto, já estavam lá, eu só não os via como sintomas de algo! Até que em um dia normal de 2020, minha mente foi sequestrada por um pensamento intrusivo. Eu voltava do trabalho dirigindo pela estrada e pelas tantas me peguei imaginando o que poderia acontecer se eu fechasse os olhos por alguns segundos. Quando dei por mim, já o tinha o feito. Por sorte, não por tempo suficiente para que algo grave acontecesse.

Passei alguns dias ruminando aquela situação. Eu me corroía por dentro e não achava que era justo ocultar o ocorrido. Acabei por conversar com minha esposa. Foi uma conversa muito difícil. Hoje eu entendo melhor por que as pessoas têm dificuldade de admitir que estão deprimidas. Eu tinha medo de perder a imagem de força e determinação que sempre me esforcei em construir. Eu tinha medo de que ela deixasse de me admirar. O que recebi dela, no entanto, foi um olhar terno e compreensivo. Como o tempo acabou por demonstrar, esta foi a pedra angular da escada que eu teria de construir para sair do buraco em que me encontrava.

Expor-me para uma segunda mulher, a psiquiatra, se constituiu também em um grande desafio. Lá estava eu, usando metáforas matemáticas e futebolísticas para explicar como estava me sentindo. Ela me ouviu com atenção por um longo período, depois elogiou a minha atitude. Saí de lá revigorado, com uma receita médica em uma mão e o telefone de uma psicóloga na outra. Uma vez mais, o acolhimento fez toda diferença.

O tratamento estabilizou meu sono e meu humor. Os dias ruins já não eram tão ruins. Costumo pensar nos remédios como a rede do trapezista! Faltava-me, contudo, a coragem necessária para fazer terapia. Não é por menos que posterguei tanto este passo. Intuitivamente eu sabia que o mesmo adamantium que me fizera resistir e prevalecer diante dos diversos desafio que a vida me impusera até então, estava me fazendo adoecer. Eu precisaria escolher mudar, escolher viver, escolher ser feliz.

Permitam-me dar uma breve pausa neste relato (pesou um pouco o clima) e voltar ao Velho Lobo. Em 29 de junho de 1997, o Brasil conquistou a quinta Copa América de sua história ao vencer a Bolívia por 3x1. A seleção era comandada por Zagallo. Após o jogo, ele dirigiu aos repórteres ofegante e ensandecido! De sua boca saiu uma frase absolutamente icônica: Vocês vão ter que me engolir! Cerca de dez anos depois, em uma entrevista, Zagallo admitiu que aquele foi um desabafo, uma indireta para àqueles que, segundo ele, o queriam fora da seleção. Zagallo, contudo, permaneceu e levou a seleção ao vice-campeonato mundial na França no ano seguinte. Mais uma vez, o maior campeão mundial de todos os tempos, se concentrava nos bons agouros e se reinventava. A seleção havia estreado naquela copa américa com uma vitória sobre a Costa Rica por 5x0 no dia 13 de junho! Não tinha como ser diferente!

“Quem faz terapia corre sério risco! Sério risco de ser feliz!” Li isto no status de um aplicativo de mensagem de um primo meu, psicólogo, há alguns anos, antes da hecatombe emocional que me acometeu. À propósito, tenho um primo e uma prima psicólogos! Finalmente chegara o momento de me aventurar neste mundo tão diferente do meu.

É difícil descrever com precisão a aversão que a minha mente tem à processos que não entendo bem e que parecem ser erráticos. Pois bem, a meu ver, a terapia era justamente assim! A primeira seção foi desastrosa. A terapeuta, outra mulher maravilhosa que entrou na minha vida por providência divina, apenas me pediu que confiasse nela e no processo. Por alguma razão ainda sem explicação, fiz isso. A segunda seção foi melhor. Daí veio a terceira, a quarta, a quinta...

Na terapia entendi que não era responsável por como me sentia, mas era sim responsável pela forma como lidaria com aqueles sentimentos. Ao longo do tempo, fui me despindo de cada uma daquelas camadas de pele que me protegeram no passado, mas que me paralisavam no presente. Minha terapeuta se converteu em alguém por quem tenho um enorme respeito (se ainda não me conhecem, eu não costumo gastar o adjetivo enorme em vão); alguém que se tornou minha amiga e com quem, contrariando todas as previsões do determinismo Newtoniano, me sinto seguro.

Ela tem me ajudado a cuidar mais de mim mesmo, a ser mais realista e a ver a vida em uma perspectiva diferente, mais leve. Ela tem me ajudado a, assim como Velho Lobo fazia vez após vez, encontrar razões para ser feliz e me reinventar!

Ainda estou em terapia. Ainda sou acompanhado pela psiquiatra. Ainda estou casado. Devo a minha vida a estas três mulheres que me acolheram no momento mais sombrio da minha vida. “Três mulheres” é uma expressão com 13 caracteres!

O Velho Lobo faleceu no início de 2024, aos 92 anos de idade. Sendo quem era, penso que Mário Jorge Lobo Zagallo viveu uma vida plena, consagrada por mais vitórias que derrotas. Para mim, seu maior legado não são os incontáveis títulos e seu papel incontestável no futebol. Antes, penso que sua maior lição diz respeito à escolha ativa e voluntária de buscar o lado bom da vida.

A depressão ainda não foi embora de vez. Ela está sempre por aí, à espreita. Sei disso. Mas como Zagallo, escolhi estar aqui para me reinventar tantas quantas treze vezes forem necessárias! Escolho isso todos os dias! Ainda que a vida humana seja sinistra e desprovida de sentido, em alto e bom eu grito ao Universo:

- Você terá que me engolir!

Resende, 25 de novembro de 2024.

P.S. Este é o capítulo de um livro de contos titulado "Entrelinhas, o futebol para além do campo".

Dalmo Rivera
Enviado por Dalmo Rivera em 27/11/2024
Código do texto: T8206398
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.