Giz

A televisão antiga que fica na sala é minha única e fiel companheira de todos os dias. Junto dela, tenho minha cadeira de balanço posicionada em um local perfeito e confortável, assim posso assistir a meus programas preferidos e me distrair um pouco nesta minha vida tranquila, monótona e esquecida. Graças a elas, eu tenho alguns momentos de entretenimento nos meus dias, meses, anos, décadas.

Sim, eu me sinto muito sozinha. Mesmo sendo querida por todos meu ex-alunos, ainda falta algo, ainda falta alguém. Sim, tive que parar de lecionar, minha voz já não saía como antes, meus braços não escreviam como antes, minha vida já não era como antes: nada é como antes.

Recebo algumas visitas de alguns de meus ex-alunos de vez em quando. É pouco, porém me faz bem. Mas, ainda assim, sinto como se fosse pouco demais, como se faltasse algo. Talvez seja esse o preço de não ter me casado. Se nunca me apaixonei? Sim, eu tive um grande amor na minha juventude, há muito tempo atrás, mas por ironia do destino, fiquei só. Nunca descobri por que motivo ele foi embora, mas hoje é tarde demais para isso, hoje não há como voltar atrás. Depois disso escolhi, então, ficar só; escolhi a solidão.

É verdade também que comigo mora meu irmão. Mas, como sempre vivera às custas alheias, como sempre fizemos muito por ele, até hoje ele não cresceu. Somos dois idosos solitários trancados em casa e, mesmo assim, ele ainda não cresceu. Ele tem tudo o que quer, sempre do jeito que quer: fácil e sem esforço. Talvez seja culpa minha: para fugir da solidão, aceitei qualquer preço e fiz o que pude para mendigar a companhia dele. Hoje sou ainda mais solitária, pois ele mal se lembra de mim, mal se importa com esta velha cansada.

Não digo que ele não seja uma companhia nunca, mas não dividimos juntos nosso tempo, não fazemos juntos coisas que são importantes para mim. Sentamos à mesa e comemos juntos, mas nossas conversas limitam-se a tarefas do cotidiano, a lembretes de pagamentos de contas, aos pratos a serem servidos nas refeições e a telefonemas que fazemos ou recebemos, mais nada. Não há interação, não há conversas animadas, não há sorrisos, não há aprendizado, não há vida! Sinto que mal conversamos; sinto como se não morássemos no mesmo lugar, como se não fôssemos da mesma família. Não temos nem assuntos em comum, talvez tudo se resuma a isso.

Tenho vários sobrinhos. Dentre eles, poucos são aqueles que se lembram desta velha senhora que dedicou parte de sua vida a dar atenção e prestigiá-los com doces e guloseimas. Geralmente, são aqueles que moram longe que mais dedicam sua atenção a esta pobre velha cansada. Alguns dos que moram por perto nem se lembram de que existo.

Acabei de completar noventa anos, ganhei um belo almoço para comemorar. Chorei. Havia tempo que não sorria como naquele dia; havia tempo que não conversava, que não demonstrava meu sorriso cansado, que não compartilhava meus assuntos preferidos como fiz naquele breve momento. Eu precisava daquilo e como precisava! Aliás, muito obrigada por isso!

Mas eu queria mais: mais vezes momentos como aquele, mais sorrisos como aqueles, mais abraços como aqueles, mais vida como aquela; eu merecia isso. Fiquei muito emocionada: foi um dia realmente inesquecível, marcante e intenso. Meu velho irmão também não fora dessa vez, mas como eu disse antes: não compartilhamos muitos momentos juntos.

Tenho muitos sobrinhos-netos. Todos já grandes, com seus empregos, com suas vidas, com suas famílias, com suas rotinas. Mas, se grande parte de seus pais nem me visitam, imagina eles! Nem sabem quem sou eu, nem sabem que eu existo; talvez nunca nem ouviram falar de mim, talvez nunca souberam quem eu sou! Mas sim, existem outros que sempre vêm me visitar. Aliás, dias atrás vieram alguns deles aqui! Foi bom, muito bom.

Acredito que em nossas conversas tenho muito a contar para eles, tenho muito a ensinar, tenho muito ainda a aprender. Sim, aprender: a principal função do professor é aprender, pois só assim poderá transmitir conhecimento. Assim eu aprendi, assim eu ainda aprendo, assim eu ensinei, assim ainda ensino; enquanto houver fôlego aqui em meus velhos pulmões cansados, assim será.

Um de meus sobrinhos-netos até está seguindo meus passos e dando aulas! Ele também gosta muito de escrever, assim como eu sempre gostei. Ao vir aqui, passou um tempo comigo, conversamos bastante, compartilhamos bastante. Eu tentei falar como era essa nossa profissão, ele me disse como estava sendo essa nova jornada dele. Contei como era bom ser professora e como era melhor ainda ser reconhecida por isso. É muito gratificante ver que estão seguindo meus passos, ver que também têm o prazer que eu tive de ensinar.

Hoje em dia, sinto que o mundo precisa mais de arte. É somente a arte que pode mudar o mundo e tirar toda essa vida mecânica e programada na qual caímos e de onde não temos conseguido sair. A literatura, por exemplo, nos faz viajar, nos traz grandes benefícios, tanto socialmente quanto culturalmente. A arte tem o poder de amadurecer as pessoas, de fazê-las crescer, de fazê-las enxergar novos caminhos, criar novos mundos, entender o mundo onde pisam. A literatura simula a vida apresentando os erros e acertos que podemos cometer; as dificuldades e as saídas que conseguimos encontrar nelas. A literatura nos faz crescer como pessoas.

Vivo pela arte e respiro essa arte. É a literatura junto de minhas lembranças que me faz querer continuar vivendo e passando essa experiência de vida que carrego aqui comigo. Tal experiência que não tive o prazer de dividir com meus filhos, pois nunca os tive. Porém, sei que meus alunos, meus sobrinhos, seus filhos e demais familiares podem aprender, nem que for apenas um pouco, com o que tenho a ensinar; todos que se importam ou já se importaram com esta velha e solitária senhorita, podem ainda ter um pouco a aprender comigo e junto comigo.

Hoje estou esperando uma visita. Comprei refrigerante, bolo, salgadinhos e docinhos. Alguma data especial? Talvez não, mas, para mim, todo dia que tenho visitas é um dia especial! Eu gosto muito de conversar com as pessoas, gosto muito de contar como foi minha vida, de compartilhar minhas experiências e de falar de tudo o que aprendi com o passar dos meus anos. Sei que as pessoas estão ocupadas demais com suas famílias, com seus empregos, com suas vidas e acabam, com isso, se esquecendo desta velha senhorita cansada. Mas, não tem problema, eu espero. Digo que espero, só não posso dizer até quando meus hoje noventa anos irão aguentar, pois não sei mais quantas velinhas ainda terei fôlego para soprar.

Bom, de qualquer forma já está tarde, parece que hoje não virão. Deixe-me guardar o que comprei para uma próxima vez, pode ser que venham amanhã, pode ser que venham semana que vem. A luz está acesa, tenho que apagá-la antes de dormir. Espero que venham mesmo amanhã; ainda estarei aqui na minha velha cadeira de balanço, junto da minha velha televisão, no mesmo lugar, esperando.

Helton Grunge
Enviado por Helton Grunge em 26/11/2024
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