Dona Corina e o Cabo Malicioso
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE. 26 de novembro de 2024
Cidade litorânea, de difícil acesso, condução só uma vez pela manhã e final da tarde para a capital, e retorno ao final da tarde. Mesmo assim, dona Corina enfrentava essa maratona diária para trabalhar na capital. Não havia emprego em sua cidade. Sem marido, pescador que morreu há mais de 10 anos durante o naufrágio de sua jangada, fazia todo esse sacrifício para preparar os filhos para um futuro mais seguro. Dois adolescentes e uma adolescente acordavam cedo para pegar a condução, rumo à escola na capital, das 8 às 12 horas, almoçavam na casa da patroa da mãe, e retornavam às 17h30.
Os patrões supergenerosos, gostariam que a família de dona Corina, viesse morar na capital, seria mais fácil para eles, o que não concordavam, já que aquela casinha era tudo o que falecido deixara para eles. Ainda moravam ali, sua mãe, alguns irmãos, também pescadores, e mais cunhadas, tios e tias. Um pedaço de terra pertencente à sua família, há mais de um século.
O sonho de dona Corina, sempre fora ser proprietária de um restaurante, mesmo que pequeno. Em sua cidade isso nunca foi possível, não havia freguês suficiente para sustentar as despesas com essa empreitada. Mesmo assim, vez por outra, costumava convidar algumas amigas residentes na capital, para almoçar em sua casa, saborear as delícias de frutos do mar, apreciar as comidas que sua avó e mãe, lhe haviam ensinado. Desde a adolescência era seu prato predileto, que preparava com mais carinho, o peixe pargo ao molho de camarão. Todos que tiveram a satisfação de serem convidados para desfrutar dessa delícia do mar, ficavam arrebatados.
Sabiam todos da qualidade da cozinha de dona Corina. Os que nunca foram convidados para experimentar as delícias desta senhora, ficavam com inveja. Entre estes, estava o senhor Osvaldiano, cabo da polícia militar, que há mais de 10 anos assediava aquela prendada senhora, até mesmo quando vivia com o seu marido Josivam.
Dona Corina odiava esse homem, não queria vê-lo nem coberto de ouro, apontava ela! Mesmo assim, obstinado em seu desejo de tê-la ao seu lado, algumas vezes o cabo já aprontara para cima dela. Certa vez tentou agarrá-la, para roubar-lhe um beijo. Ela defendeu-se como pode: acabara de comprar um peixe de 30 quilos, que seria servido no almoço para algumas amigas da capital, a mulher não teve dúvida, sentou o dito cujo, na cabeça do maldito cabo, que o fez rodopiar em volta de si e sair rolando pela areia, duna abaixo.
Outra vez, no ônibus cheio que a levaria para o trabalho, o desequilibrado cabo ficou atrás de dona Corina, por poucos segundo, só o tempo de pisar firme, com seu sapato meio salto, nos pés do engraçadinho, que usava chinela de borracha. Um grito alto ecoou dentro do ônibus, fazendo os outros passageiros olharem para trás, em busca de saber o que provocara aquele grito. Ela, sem fazer nenhum alarde, apenas exclamou:
─ Desculpe-me, eu não vi os seus pés.
O homem, mais do que depressa baixou a cabeça e não disse mais nada, com medo de ser esculachado pelos demais passageiros, quase todos conhecidos, saiu de fininho, caminhou até o motorista, pediu para abrir a porta do veículo e parar em frente ao bar adiante. Com cuidado, desceu os dois pequenos degraus, e, depressa entrou no pequeno estabelecimento. O motorista, alheio a tudo que se passara, preocupado em fazer o seu horário render, não ficara sabendo do acontecido. Pela pressão dos demais, o homem ao volante buzinou algumas vezes, indicando que o veículo deixaria o local imediatamente. Inocente, esperou mais alguns segundos para que o homem retornasse.
─ Eu parei para ele fazer as suas necessidades, já que tremia e balbuciava palavras que eu não entendia. - falou o motorista, também nervoso, depois de se inteirar do que acontecera.
Pé no acelerador! – gritou, zangado um dos parentes que estavam no ônibus ─ Deixa esse sem-vergonha aí, para ele aprender a não mexer com quem não deve – concluiu o parente, mais raivoso ainda
Inteirado do acontecido o motorista, chateado, exclamou:
─ Nunca aconteceu isso nesse “carango.” Aqui só entra gente de respeito, de bem, nunca observei imundice assim. É a primeira vez que esse “cabra” entra no meu ônibus. Nem mesmo o sargento da guarda vai me fazer receber esse indivíduo no meu ônibus, que dirijo há mais de 5 anos – falou o “motora” com muita raiva.
Todos se acomodaram no veículo. Os que estava em pé, procuraram distância das mulheres. Sabiam que, de agora em diante, seriam fiscalizados e não seria permitido assédio, até um simples beijo não permitido, poderia causar confusão.
Na continuação da viagem, o ambiente parecia de velório. Ninguém falava mais, algumas beatas rezavam o terço, pedindo garantia ao bom Deus, que o restante do percurso fosse de paz. Que a proteção do Divino acalmasse o motorista e todos chegassem bem ao seu destino.
Na tarde daquele dia, no retorno, ao chegarem naquela pequena cidade, onde sempre reinou a tranquilidade, foi possível perceber algum movimento estranho. Os passageiros ficaram sabendo da morte do cabo Osvaldiano, por suicídio. Os primeiros a descerem do veículo foram conjecturando que a vergonha havia tirado a vida daquele indivíduo, uma autoridade local, que por certo não aguentaria a desonra humilhante que estaria sujeito, quando todos ficassem sabendo o que acontecera dentro daquele ônibus.
Para salvaguardar a integridade moral de dona Corina, ninguém ousou incluir o nome dela naquela história vergonhosa, que teve como ator principal a maior autoridade daquela pequena cidade, sempre calma e longe de escândalos.