MARCOS
Saia do banheiro depois de um banho demorado quando eles entraram no quarto:
-"Marcos, este é D, ele vai ser seu colega de quarto. Pode se instalar ali naquela cama ao lado da janela enquanto eu vou ver se consigo um almoço, apesar do horário."
Estende a mão e o cumprimenta. Cara gordo, grande, meia idade, deve ser álcool ou cocaína. Assim que a auxiliar sai do quarto ele se vira e diz:
-"Amigo, você só me dá uma licença? Prometo que não vou incomodar.
Coloca sua mala em cima do criado mudo da sua cama e se ajoelha começando a orar.
"Outro hipócrita religioso. Se fosse cristão de verdade não tinha que ser internado. Igual na cadeia, o cara mal ouviu a tranca bater já tá dando glória para fugir das cobranças"
Se considerava, apesar de tudo o que passou, um bom avaliador de caráter. Se deitou na sua cama, mas não tirava os olhos do seu novo colega de quarto. Ele orava quase em silêncio, mas seu corpo todo tremia. Depois de uns dez minutos começou a chorar copiosamente, de soluçar. Após um tempo neste estado passou a falar em línguas. A auxiliar da tarde entrou no quarto e ia falar alguma coisa com ele, fez sinal para que não o incomodasse e que viesse depois. Ainda bem que essa era a mais esperta da enfermagem e entendeu. Depois de um tempão ele se acalmou, mas continuou de joelhos orando. Sua passagem pela igreja, onde chegara a ser pastor, e os cinco anos que puxou no fechado, lhe ensinaram a reconhecer a fé sincera. Não conseguia imaginar o que acontecera com esse caboclo, mas Deus tocara no coração dele. Depois de quase 40 minutos ajoelhado ele se levantou, o rosto amassado e os olhos vermelhos:
-"Aí Irmão, o banho aqui é livre, e a água essa hora, como todo mundo esta usando, já vem quentinha, nem precisa esperar muito. Toma um banho lá e depois vai conversar com o pessoal da enfermagem que acho que eles querem falar com você."
-"Obrigado amigo."
Foi meio tonto recolhendo as roupas, toalha e sabonete entre suas coisas para ir tomar banho.
Marcos, fingindo desinteresse, não tirava os olhos dele, mas agora com admiração. Já tivera esta fé, este fervor. O que o impedia de buscar a Deus de novo? Vergonha. No íntimo ele sabia que era esse o seu pecado, o orgulho. Não aceitava o que lhe tinha acontecido, depois de ter subido tão alto, ter descido tão baixo. Enquanto não se erguesse o mínimo que fosse por suas próprias forças, não podia pedir nada a ninguém, nem a Deus. Principalmente a Deus, ele que fizera tão mal a Sua obra e tão pouco caso das benções que recebera.
O cara saiu sem camiseta do banheiro e estava cheio de marcas vermelhas e roxas pelo corpo, típico de quem tomou uma surra bem dada:
-"E aí velho! Você tomou uma coça dos caras da biqueira ou foi dos homem?
-"Não. Foi da minha esposa e da minha filha grávida. Ela teve um princípio de sangramento por causa do esforço que fez me batendo. Eu estou preocupado dela ter perdido a criança por causa disso."
Marcos ficou em silêncio, impressionado tanto com a calma quanto com a sinceridade dele. Não falou mais nada até ele sair do quarto. Esse parecia alguém que tinha alguma coisa a acrescentar. Estava internado há 5 dias e até agora não encontrara ninguém que pudesse trocar uma ideia decente, todos só falavam de quanta droga tinham usado, como tinham escapado deste ou daquele flagrante, já estava de saco cheio!
Não adiantava nem tentar dormir agora, mas mesmo assim ficou deitado olhando para o teto. 43 anos! A vida passou como um raio, ontem mesmo estava com 30 anos, casado, vendo sua filha nascer, trabalhando de mecânico, pastor. Sua mãe era só orgulho, depois de todo trabalho que ele havia dado na infância, adolescência e juventude. Silvana! Tudo culpa da Silvana! Ainda hoje conseguia lembrar aquela mulata emagrecida e suja, com a roupa curta expondo todo seu corpo exuberante, entrando como uma criança assustada na igreja. Ele do púlpito sentiu uma imensa pena, já imaginando o que a trazia ali.Se tivesse seguido os protocolos, deixado que uma irmã a abordasse para depois trazer o caso até ele, se não tivesse se envolvido nos problemas dela, se não tivesse pedido para sua mãe abriga-la por uns dias (que se tornaram meses), se não a visitasse quase todos os dias em um horário em que sua mãe não estava...
Agora não adianta chorar! Bola prá frente! O que fazer quando sair daqui? Trabalho registrado podia esquecer, ninguém ia contratar uma pessoa que tirou cinco anos de cadeia. Trabalhar no tráfico nunca mais, chega de confusão e para o sistema não queria voltar de jeito nenhum, melhor a morte. Ele recebia o benefício, mas era muito pouco, não dava para nada. Graças a Deus sua ex-mulher não pede pensão. Na verdade, não tinha nenhuma informação do paradeiro dela e nem o da sua filha. Samira, treze anos agora! Deve estar a coisa mais linda do mundo...
Chamando outro homem de pai. Que ele soubesse ela não tentou mudar o registro dela, mas vai saber, anos na loucura, Santos, os anos na tranca, e ter ido morar na rua, esse bando de leis novas que só fodem os homens. Não, essa podia dar por perdida. Mas ainda tinha a Samira, que sua mãe tinha a guarda.. Se conseguisse parar de beber e de cheirar ainda dava para fazer alguma coisa certa por alguém. Devia a sua mãe (além de outras milhares de outras coisas mais) o fato de mesmo ela tendo 8 anos nunca o vira alterado.
Levantou-se e foi até a sala, já estavam servindo o lanche da tarde. Era um comer sem fim neste lugar! Café da manhã, depois duas horas depois um mingau que eles chamam de colação, almoço, lanche, janta e ainda tem um chá com bolacha depois. Uma verdadeira fazenda de engorda de nóia e pudim de pinga. Sentou-se ao lado do recém chegado que receberá bolachas e dois copos de outro chá:
-"Porque o seu veio diferente?"
-"Eu sou diabético"
-"Daqueles que tem que tomar injeção na barriga, essas coisas?"
-"Não, eu é só remédio e dieta"
-"E aí, se tá aqui porque? Cachaça, cocaína?"
-"Pedra. Cachaça também. Mas eu só bebia quando eu fumava, então basicamente é por causa da pedra."
-"Você não tem jeito de quem usa pedra. Ainda tava trabalhando?"
-"Tava. Não sei se ainda vou estar. Trabalhava no administrativo pro Estado."
-" Funcionário público. Pode ficar tranquilo. Precisa aprontar muito para ser demitido "
-"Eu estou aqui, não estou? Quanto você aprontou para estar aqui?"
-"Hahahahahahahaha! Você tem razão!
-"Você foi pedra também?"
-"Não, álcool e cocaína. Já fumei pedra, mas parei quando fui preso, e não voltei a fumar depois que sai. O velho, não é por nada não, desculpa entrar no seu particular, mas eu vi você orando. Você já foi pastor, alguma coisa assim?"
-"Queria poder dizer que sirvo a Deus na Congregação, mas é mais exato falar que frequento. Agora há pouco, antes de subir, apareceram três músicos do nada e tocaram um hino e eu ouvi Deus falando comigo: Eu não te abandonei!"
Os olhos dele se enchem de água e as lágrimas começam a descer pelo seu rosto imediatamente:
-"Desculpa, é que..."
Quase como que instintivamente Marcos o abraça, mesmo ele sendo quase o dobro do seu tamanho.
-"Não tem nada que se desculpar não irmão. Quem dera eu pudesse chorar assim. Se Deus falou, vai se cumprir. É benção."
Os dois se afastam, ele se recupera, a auxiliar de enfermagem chama D para tomar a medicação, enquanto Marcos fica na mesa comendo o pão com queijo que veio de lanche e olhando para a televisão. Assim que ele termina de comer, ela também o chama, dá para ele um comprimido de diazepan e outro de clorpromazina. Logo depois que toma ele vai caminhar pelo corredor externo. Vinte metros, que ele fica indo e voltando sem parar por uns vinte minutos, até sentir o efeito do remédio bater. Ele para, vai para o quarto, pega uma toalha e vai para o banheiro. Liga a ducha e senta no vaso sanitário esperando a água esquentar. Depois de um minuto entra no banho e, como vem fazendo seis a sete vezes por dia desde chegou, começa a se masturbar. A inspiração é sempre a mesma: Silvana! As tardes torridas na casa da sua mãe, com o gosto do proibido sendo ele casado e pastor, as visitas íntimas dela no presídio em Cubatão, as loucas transas depois das brigas quando sua mulher foi embora com sua filha e ele foi expulso da igreja. Ela, sempre ela, seu mundo era ela...
Acabou. Sentiu o relaxamento do corpo de juntar com o da medicação. Se secou, vestiu o short e deitou na cama. O pensamento nela, seu amor e sua perdição. O que poderia redimi-lo do que fez por causa dela. Abandonou a fé, voltou a traficar, a fumar crack, experimentou K2 e a loucura foi tanta que sem saber como foi parar em Santos. Lá lhe acolheram e a Silvana foi atrás, deixando a filha deles para sua mãe cuidar. Ele nem ligou, achou até bom. Depois de dois anos ali foi preso por tráfico e se manteve calado. Só quando saiu que descobriu que seu amor só não o abandonou porque os Irmãos não a deixaram. Ela já tinha colocado o dela para negócio há muito tempo, sendo amante de um dos malandros da área. De madrugada ele entrou no barraco onde os dois estavam, abriu o gás e deixou um "esquema" de acender com um pavio de dez minutos. Foi até um bar próximo e viu o lugar começar a queimar. Até ajudou a tentar a apagar. Foi " pras idéias", e saiu ileso, mas expulso da Baixada.. Mas a visão do corpo dela carbonizado o assombrava desde então, tendo se entregado para a cachaça.
Com o gosto do beijo dela dormiu. Sonhou com ela queimando dentro do barraco e lhe implorando sua ajuda. Ele negava sorridente. Acordou para jantar de bom humor.