Interlúdio Na Cidade Baixa

- o bar -

Duas pessoas entram em um bar. O que parece o começo de uma piada é, na verdade, um pequeno descanso antes do ano novo. Eram vinte pra meia-noite e a maioria das pessoas já ia caminhando rumo a praia, a algumas quadras do pequeno bar.

O dono do estabelecimento não era visto em lugar algum, pois havia ido ver os fogos também. Os funcionários, porém, permaneceram, todos trabalhando e conversando, bem humorados.

As duas pessoas chegaram e se sentaram em mesas separadas. Não estavam juntas, apenas chegaram num mesmo momento. Enquanto a onda de pessoas se dirigia as ondas do mar, esses dois tinham outros planos...

Na mesa mais ao canto do bar, perto do balcão do caixa e sem vista para os fogos, estava um rapaz: sua aparência, pouco importava e ele estava com uma enorme mochila, a qual deixou por cima da mesa.

Não muito longe dele, na mesa seguinte, estava uma mulher: a aparência importava menos ainda e ela apenas olhava pro fundo do copo que estava em sua mesa. Uma garçonete se aproximou.

"Peço desculpas pelo transtorno, mas eu só vou limpar a mesa rapidinho." Disse educadamente.

A moça deu espaço e não disse uma só palavra. A garçonete observou o olhar caído da moça. Pensou em dizer algo.

"A senhorita vai querer alguma coisa?"

A moça levantou os olhos e pensou por uns segundos.

"Não, acho que não."

A garçonete acenou com a cabeça e voltou para o balcão com o copo vazio.

O rapaz, a essa altura, só observava a interação, também sem dizer uma palavra. Ele se virou pra garçonete que voltava de trás do balcão e disse:

"Ei, eu vou querer um uísque desse." Disse enquanto apontava pro cardápio.

"Com ou sem gelo?" Gritou de longe o bartender.

"Com gelo."

"Está bem, eu já levo a você." Disse a garçonete.

Ele voltou seus olhos pra moça. Agora ela também o observava.

Os olhares se cruzaram. Vergonha em ambos os lados. Ela abaixou a cabeça e puxou o celular do bolso e ele olhou pra mochila. Pro pequeno chaveiro nela.

A garçonete voltou com um copo de uísque e o pôs sobre a mesa.

"Obrigado."

"Não, há de quê."

Ele chacoalhou de leve o copo em sua mão, o gelo tilintava dentro do vidro. Ele levou o uísque a boca e olhou pra frente de novo. Lá estava ela, o encarando mais uma vez.

Dessa vez, não ouve vergonha. Ele franziu a testa de leve pelo não entender e pelo queimar da garganta, a medida que a bebida descia goela a baixo.

Ela desviou o olhar mais uma vez. Ali a pouco, olhava de novo. Ele se mantinha estático, apenas observando.

A esse ponto, já eram dez pra meia-noite e os funcionários decidiam com um joquempô, quem ficaria e não veria os fogos. A dicussão não parecia nada boa.

"Mas eu ganhei! Agora você tá inventando regra?"

"Mas a gente combinou melhor de três, lembra?"

"Não, eu não lembro."

"Quer saber? Oh, vamo de novo."

"Não, sem essa cara. A Sara e o Marfim decidiram com uma jogada, porque que você tem que decidir com três?"

"Tá com medo de perder?"

"Não! Não é isso. É que-"

"Então no três: um, dois... três!"

"Ha, ha! Eu ganhei! Eu disse que tinha ganhado!"

"E que tal melhor de cinco?"

O outro rapaz riu.

"Sem chance. Hasta la vista, amigo. Eu não vou perder esses fogos."

"Melhor correr. Faltam cinco."

O rapaz saiu em disparada. O outro se reclinou na cadeira no caixa.

Os dois últimos clientes observavam a discussão. O copo de uísque, agora, quase vazio. Ele voltou seus olhos pra moça e ela o olhava também. Permaneceram em silêncio por alguns segundos.

Então, o rapaz tomou o último gole e se levantou, sem pegar a mochila. Foi até a mesa da moça.

"Com todo o respeito, mas por que fica me olhando?"

"Eu pergunto a mesma coisa." Respondeu.

Ele se sentou e respirou fundo, pensando em uma resposta.

"Ah, isso é injusto."

"Por que?"

"Porque eu só te olhei por que achei que estivesse me olhando. Como eu poderia saber disso sem olhar?"

"E de que isso importa?"

"Precisa importar?"

"E eu preciso ter um porquê pra olhar pra você?"

Ele ficou quieto por alguns instantes.

"É, acho que não."

"Então pronto."

O relógio deu meia-noite, os fogos começaram, longe demais. Só se ouviam os ecos deles pelas ruas vazias. O rapaz franziu a testa.

"Porquê veio pra cá?"

"Eu lhe pergunto o mesmo."

Ele riu.

"Essa conversa vai ser só isso? Eu falo, você repete?"

"Enquanto você ficar querendo o porquê das coisas, sem me dar os seus porquês, vai."

"É, talvez seja justo. Mas que garantia eu tenho?"

"Nehuma. É como roletar um dado."

"Um dado parece mais justo que o que você diz. Mas ei, sou eu quem estou incomodando não é?"

"Não. Não está me incomodando. Está curioso."

"É, estou."

"Eu também estava. Viu? Você disse um porquê e eu lhe disse outro."

Ele sorriu.

"Certo. Bom, eu acho que vim aqui porquê não queria ficar na praia."

"Acha? Não tem certeza do que faz?"

"Qual é! Eu lhe dei um porquê, me dê outro."

"Não, não, não! Você disse que acha, isso não é motivo, é achismo. Convenhamos, não querer ficar na praia não é motivo pra ninguém deixar de ir."

"E se pra mim for?"

"E como poderia ser?"

"Eu moro na praia."

"Ah."

Um silêncio preencheu o ambiente. Os quebraram o silêncio com risadas. Ela prosseguiu.

"Desculpe, desculpe, eu não tinha parado pra pensar nisso. Ainda assim, não acho que é válido. Se aprofunde!"

"Não, não! Eu dei um porquê e quero o seu. Por que está aqui?"

Ela ficou quieta por um instante. Como se bolasse uma resposta.

"Ei, vamos, não quero que você me invente um motivo."

Ela riu.

"Ei! O seu me pareceu bem inventado."

"O meu foi uma meia-verdade, não uma mentira."

"Está bem... hã... eu vim aqui porque precisava... descansar a cabeça."

Ele levantou as sobrancelhas, em certo espanto.

"É... eu também. E também porque gosto do silêncio."

"Dessa noite né?"

"É. Da madrugada também."

"Mas não é a mesma coisa." Disseram os dois, em uníssono.

Ficaram quietos novamente. Sorrisos sem dentes e uma tímidez de terem, por um momento, pensado a mesma coisa.

"Acha que no espaço é assim?" Ela retomou a conversa.

"Olha, eu já pensei sobre isso. Talvez... mas tenho medo do espaço."

"Por que?" Disse, curiosa, enquanto apoiava a cabeça sobre as mãos, procurando prestar mais atenção.

Ele franziu a testa. "Porque... bom... é grande demais, não da pra respirar e a gente teria que ficar... numas latinhas, sabe?"

"A estação espacial é uma latinha bem grande."

"Não tão grande quanto o universo."

"É, faz sentido."

"Já o mar... não parece tão assustador assim."

"Você ficou maluco?! O mar é mil vezes pior."

"Não!"

"Sim! Ele tem... tubarões e... tempestades e- e se o seu barco naufragar?"

"E se a sua latinha explodir?"

"Pelo menos eu morro rápido, você vai ficar naufragado lá."

"O que é uma chance de sobreviver."

"Ou de morrer lentamente da pior forma possível."

Silêncio. Já eram quase meia-noite e dez.

"Você é bem pessimista, garota."

"Realista. Eu sou realista."

"Tá bom, tá bom."

"Você disse que mora na praia."

"Sim, eu disse."

"Você pesca?"

Ela riu.

"Por que? Acha que todo mundo que mora na praia, pesca?"

"Ai, ai... você e seus porquês... sabe bem que não foi o que eu quis dizer."

Ele riu.

"Está bem. Eu não pesco, mas meus avós costumavam pescar. A casa é deles. Deixaram de herança pra mim. Eles até me ensinaram uma coisa ou outra, mas..."

"Mas?"

"Sua vez. Ou tá achando que esses porquês saem de graça?"

"Certo. Bom... eu moro em outra cidade. Na verdade, eu só vim pra cá por causa de uma pessoa."

"Você tinha um encontro marcado?"

"Sua vez."

"Ah, qual é?! Eu disse muito mais coisas."

"É, mas os nossos porquês tem pesos. Os seus foram tranquilos, os meus são muito mais delicados."

"Justo. Mas como pode afirmar que meus avós não são um assunto mais delicado pra mim?"

"Bom, eu não sei. Eles são?"

"Isso custará um porquê."

"Está bem. Então, respondendo a sua pergunta: eu não tinha nenhum encontro marcado. O problema é exatamente o oposto."

"Então ele não quis passar o ano novo com você?"

Ela gargalhou.

"Uau. Ele? Quem disse que é um 'ele' e por que parece que tem uma história mirabolante na cabeça?"

"Ah, me desculpe. É apenas o que a minha curiosidade faz quando ela não é saciada. Eu leio muitas novelas, sabe?"

"É... acho que isso explica muita coisa. Sua vez."

"Eu nunca consegui aprender a pescar. É bem mais difícil do que parece e o meu eu criança tinha muita dó dos peixes."

"Essa não foi a pergunta que eu tinha te feito."

"Calma. Essa foi a primeira. A segunda é se esse assunto é delicado: ele é. Bastante delicado."

"Mas você ainda vai me responder se eu te perguntar alguma coisa? Ou isso tá fora dos limites?"

"Eu não sei... por um lado, talvez fosse bom conversar um pouco com outro alguém sobre isso. Por outro, eu estou cansado demais pra esse tipo de papo."

"Eu digo o mesmo dela."

"Então era ela?"

"Sim. Isso te decepciona?"

"É... um pouco. Quebrou a minha história mental, sabe? Eu não consigo tirar o Fernandão de bigode da minha cabeça."

Ela gargalhou alto.

"Fernandão de bigode? Não, não! Continue com isso na sua cabeça. Vai parecer mais engraçado, ao menos."

"Já está bem engraçado, na minha cabeça. Mas por que pensou que eu me decepcionaria?"

"Porque eu não conheço muitos rapazes. E os que conheço se decepcionam quando descobrem."

"Bom, isso é porque eles estão interessados em outras coisas."

"Só pensei que estivesse também."

"Bom, não me leve a mal, mas você é bem bonita. Ao menos, aos meus olhos e os da sua garota também. Eu acho..."

Ela riu. Ele prosseguiu.

"Mas é que eu não estou na melhor fase da minha vida sabe. Não acho que conseguiria me relacionar nem se eu quisesse."

"Bobagem. Você é engraçado e sabe conversar e isso já é um charme."

"Palhaços são engraçados e não é o bastante saber conversar, tem que haver alguém que escute e responda também."

"Com que tipo de mulheres você anda saindo? Portas?"

"Mulheres? E quem te disse isso?"

Ela se surpreendeu e riu. Ele continuou.

"Brincadeirinha. Só saio com mulheres mesmo."

"Deixa de ser idiota." Disse em bom humor.

"Talvez eu esteja perdendo algo, mas meus gostos são refinados para curvas e cabelos longos."

"Tem muitos homens exatamente assim."

"É modo de falar, você me entendeu bem."

Ela riu e ele também. O relógio marcava meia-noite e meia.

"Ei, o que acha de sairmos daqui?"

"Eu acho uma boa ideia. Logo logo os bêbados vão chegar."

"Só um instante então, eu vou pagar meu uísque."

"Vai levar a garrafa?"

"Tava pensando nisso. Mas só tenho cinquenta reais."

"Eu pago a outra metade."

"Não é bem a metade..."

"Ah qual é, nem é Jack Daniels. Não deve ser tão caro assim. Barman, quanto é aquela garrafa?"

- a praça -

Nas estradas vazias, os dois andavam lado a lado com duas latas de cerveja barata nas mãos.

"Dá pra acreditar nisso? 157 reais num uísque barato?!"

"Pois é. Eles não querem que os bêbados morem ali a madrugada inteira."

"Acho que é compreensível. Mas eles também estão se aproveitando dos turistas."

"Ah, com toda a certeza."

"Eu costumava trabalhar num desses bares. No inverno eles fechavam e no verão aumentavam os preços. Se pergutassem pra gente, diziamos que não, que tudo estava exatamente como no verão anterior. Era patético."

"Uau, você trabalhando num bar? Com essa língua afiada, dúvido que tenha durado mais de uma temporada."

Ela riu.

"Cala a boca. Eu não trabalhava no caixa. Eu só fazia as bebidas."

"Então sabe fazer aqueles negócios com copos metálicos?"

"Coquetéis? Sim, muitos deles. Mas e você? Trabalha com alguma coisa?"

"Que tipo de pergunta é essa? É claro que eu trabalho."

"Foi mal, é só que... você disse que só tinha 50 reais e-"

"É fim de ano, é até um milagre que eu tenha cinquenta." Ele riu.

"Bom, independente. Com o que trabalha?"

"Eu conserto coisas."

"Coisas? É mecânico?"

"Não."

"Encanador?"

"Não."

"Eletricista?"

"Não, eu sou técnico de informática."

Ela gargalhou alto.

"O quê? E o que isso tem a ver com consertar coisas? Você não fica só... mexendo no computador."

"Bom, na maioria das vezes, sim. Mas tem dias que eu preciso ver se não é alguma peça queimada ou coisa assim."

"Nossa, você me fez acreditar por um instante que eu estava falando com um engenheiro."

"Ouch, não precisava disso."

"Não! Não! Não entenda errado, eu só achei engraçado. Não há nada de ruim em ser técnico de informática. Eu mesma não sei muito sobre computadores... talvez precise doa seus serviços, algum dia."

Ele ficou quieto. Uma tristeza parecia lhe preencher o rosto.

"Ei, o que foi? Eu realmente o ofendi? Sinto muito se-"

"Não, não... é só que eu lembrei de algumas coisas. Não tem nada a ver com o que você falou."

"Não, poxa... foi porque eu falei algo, não é? Me desculpe, não queria chateá-lo."

Os dois andaram em silêncio pela penumbra das ruas vazias. Chegaram até o centro da cidade. Uma praça vazia, nenhum sinal de vida. Até os mendigos tinham ido ver os fogos. Eram dez pra uma.

Os dois chegaram ao parquinho, perto da praça e se sentaram nos balanços.

"Você tava me falando da sua garota lá... o que houve?"

"Olha, eu realmente não sei te responder essa... foi tudo tão rápido. Nós estavamos bem e de repente..."

Ela fixou seu olhar nos balanços da praça. Nenhuma outra palavra saiu de sua boca.

"Acho que esse é seu papo cansado, né?"

"É... acho que sim."

Eles ficaram em silêncio por mais alguns minutos. Ele quebrou o gelo.

"Você acha que tem alguma coisa depois daqui?"

"O quê? Como assim?"

"Acha que tem um lugar, depois que a gente morrer?"

"Que mórbido e que repentino isso."

"Foi mal, é só uma coisa que eu estive pensando."

Eles se aquietaram mais um pouco, dessa vez não durou muito. Ela abriu a boca.

"Acho que não. Acho que é aqui o fim das coisas. Ficaria mais tranquila em acreditar no contrário, mas..."

"Mas?"

"Convenhamos, é bom de mais pra ser verdade. E não há sentido em muitas coisas dessa teoria."

"Eu entendo. Mas eu tenho tentado acreditar."

"Por que?"

"Porque acho que cansei de perder a esperança nas coisas. Então quero acreditar em um além. Não num céu convencional, sabe? Só em algo depois daqui, talvez com gente que já foi... talvez... com meus avós."

"Meu deus, eu sinto muito. Seus avós, eu não sabia..."

"É eu sei. Eu não lhe disse porque esse é o meu papo cansado. Podemos até conversar sobre isso, mas eu não quero seus sentimentos."

"Mas isso tudo, foi recente?"

"É a sua vez, de novo."

"Ah é, Foi mal. Acho que me deixei levar pela conversa."

"Pois é, eu também."

"Bom, eu e minha namorada, vamos chamá-la de Primavera..."

"Tipo o filme?"

"É, tipo o filme. Mas não tem nada a ver com isso. É só um jeito de chamar."

"Certo."

"Bem, eu e Primavera, nos conhecemos na Parada do Cigarro-"

"Parada do Cigarro?"

"Era o nome que os colegas do bar que eu trabalhei davam pro lugar ondr a gente ia fumar. Era uma parada de ônibus que a prefeitura largou a muitos anos. Muito útil em dias de chuva. Enfim..."

Ela tomou um gole de cerveja.

"Eu era bartender de muitas temporadas e ela tinha chegado na limpeza fazia alguns meses. Começamos a conversar e simplesmente bateu, entende?"

"Entendo."

"Bom, é a sua vez."

"Foi recente sim, mas a doença de meu avô já vinha piorando há alguns anos."

"Seu avô... mas e sua vó? Também era doente?"

"Não, não... mas ela não durou muito depois que ele morreu. Acho que os dois tinham raízes profundas um no outro."

"E você morava só com eles?"

"Sim."

"E seus pais?"

Ele ficou em silêncio.

"Ah, é minha vez, né?"

Ele sorriu educadamente, sem mostrar os dentes.

"O tempo foi passando e nós duas largamos o nosso emprego pra formar o nosso próprio negócio. Passamos a morar juntas, pouco tempo depois. Eu me mudei pra cá, pro apartamentinho dela... as coisas pareciam estar melhorando e então..."

Ela se calou.

"Minha vez?"

"Então tudo foi pro inferno!" Ela esbravejou e jogou a latinha de cerveja longe. Uma raiva transbordava por seus olhos, assim como suas lágrimas. Ela enxugou o rosto rapidamente.

"Vocês terminaram?"

"Não... sim. Quer dizer, eu não sei... nunca foi dito: 'sim, nós terminamos' mas ela não está aqui, né? Então... eu acho que sim. Eu acho que ela acha isso também... sei lá. Sua vez."

Ele ficou um tempo tentando lembrar da última pergunta.

"Bom. Eu sempre morei com meus avós. Não conheci meus pais."

"E como foi isso? Eu ficaria me sentindo horrível. Acharia que é tudo minha culpa, de algum jeito."

"No começo foi bom. Eu não tinha o conceito de pai e mãe... pra mim eles eram meus cuidadores. Mas aí veio a escola e me ensinou que eu era o diferente da turma. Aí eu me senti terrível mesmo, mas não durou muito também."

"Olhando pra trás, até que a escola passa rápido."

Ele riu.

"Acho que não me entendeu: eu não terminei meus estudos."

Ela se surpreendeu. Ele tomou um gole de sua cerveja.

"Tá, minha vez..." ela arranhou a garganta e prosseguiu. "A Primavera, ela é mais centrada, saca? Ela tem um dom pras coisas... sabe exatamente onde quer ir, qual é o próximo passo... foi ela quem fez eu largar aquele emprego e se não tivesse feito, acho que eu ainda estaria lá."

"Você não sabe o que quer?"

"Não... nenhum pouco. Já tentei muitas coisas: já fiz faculdade, já fiz cursos, virei bartender assim inclusive, já viajei pra outros estados, já visitei outros países. Mas acho que não importa aonde eu vá, eu nunca vou saber mesmo o que eu quero. Sou o oposto dela... talvez, por isso tenha tudo ido pro caralho."

"Não... não acho que foi isso."

"Eu acho. Mas e você? Sabe o que quer fazer?"

"Gostaria de ganhar a vida escrevendo."

"Uuuh... e o que gostaria de escrever?"

"Sei lá, coisas sobre a vida. Um livro de memórias, talvez..."

"E teria coragem de colocar suas memórias numa prateleira?"

"Não, não. Não as minhas... as minhas eu gostaria de deixar pra minha família, se eu algum dia chegar a ter isso. Queria escrever as memórias dos outros, poderia ficar conhecido como o catador de memórias."

Ela riu.

"É um nome esquisito, mas... acho que vale a tentativa. A ideia parece legal. Mas ei, não vá escrever nada do que eu estou te dizendo!"

"Não, não... isso é uma ideia muito distante de nós. Não se preocupe com isso. Eu nem sei se ela sequer é possível."

Ele tomou mais um gole da cerveja. Enquanto olhava pro céu estrelado.

"Pelo menos você tem uma ideia."

"É... isso é verdade. Mas vocês brigaram só por causa disso? Parece bobo."

"Não, não... brigamos por muitas coisas. E essa não tinha sido a primeira vez, mas acho que foi a última. A verdade é que eu acho que só atraso ela, e ela me cisma que não."

"Talvez devesse ouvi-la."

"Eu tentei. Disse a você que fizemos um negócio juntas, mas não deu certo."

"Meus avós passaram por algo parecido."

"Bom, é a sua vez de novo. Aproveita e me conta."

"Olha, eu não sei o quão verdade é isso. Mas é uma história do tempo em que eles se conheceram."

"Fala logo."

"Tá bem, tá bem. Meus avós se conheceram muito jovens, minha vó era muito mais velha que meu avô..."

"Que curioso, normalmente é ao contrário."

"Pois é. Meu vô tinha 17 e minha vó 20, ele morria de medo da moça." Disse com um sorriso no rosto. "Ela tinha uma floricultura, então meu vô tinha que ser criativo com as flores, pois ela já tinha a maioria delas. Enfim..."

Ele deu uma pausa pra beber o último gole de cerveja. Arremessou a lata direto no lixo.

"Bom, eles eventualmente ficaram juntos e passaram a cuidar da lojinha. Mas foi aí que eu e minha mãe quase deixamos de existir. Eles brigavam feio, todos os dias, por diferenças na forma como achavam que devia cuidar da loja. Quanto mais dinheiro ganhavam, mais brigavam pelo que devia ser feito com ele."

"Mas e aí? Como eles se resolveram?"

"Eles venderam a loja."

"O quê?"

"Sim, a loja estava dando dor de cabeça, como dizia meu vô e ele preferiu ficar pobre do que perder a minha vó. Os dois passaram a trabalhar em mil e um empregos e nunca puderam, efetivamente, se aposentar."

"Nossa... que coisa triste."

"Meu vô não via dessa maneira. Nem minha vó. Acho que o que eles precisavam mesmo era só um do outro."

"Acha que é assim com a minha Primavera?"

"Não sei bem. Não conheço você tão bem assim, nem a menina. Mas acho que não, não podemos nos espelhar em fábulas. Meus avós se amavam e diziam que se amavam, mas brigavam bastante. Talvez até mais do que o número de 'te amos' que eu os ouvi dizerem, um para o outro."

"É eu sei... acho que só queria um motivo pra tentar de novo."

"E precisa de motivo?" Ele riu.

"Muito engraçadinho, você."

"Mas falando sério, se você quer tentar de novo, vai lá e tenta. Explica o teu lado."

"É que- é muito complicado eu acho. Já passou tempo demais... ela já deve ter ido pra próxima."

"Ou ela tá tão mal quanto você, mas ei, não tem como saber, né?"

"É..."

Já era uma e meia da manhã. Os dois olhavam em silêncio o céu limpo e estrelado.

"Você disse que quer escrever, então... porque não escreve?"

"Não sou bom o bastante. Não tenho tempo o bastante. O trabalho me consome muito... Sei lá, são várias razões. E além do mais, é sua vez."

"Desde que a conheci, ela já tinha esses planos enormes de vida. Ir pra tal lugar, comprar X coisas, transformar A em B, enfim... ela era a faxineira do bar e sonhava maior do que eu poderia sonhar, estando em uma posição bem melhor que ela."

"E ela chegou a realizar alguma dessas coisas?"

"Não. E isso também fez parte da discussão. Eu disse a ela que sonhar alto assim não ia nos levar a nada. Que quem voa alto, cai do alto também... esse tipo de coisa."

"Seu pessimismo."

"Meu realismo."

"Tá certo."

"Ela achava que as coisas eram fáceis e sempre se deparava com o grande muro da realidade. Aí ficava mal. Se achava um nada e eu me sentia sozinha... ela começava a dizer que não me merecia porque prometia e não cumpria. Que bobagem... mas ela sempre voltava atrás."

"Eu me vejo um pouco nela. Prometi tantas coisas pros meus avós. Eles nunca viram nada. Sempre sorriam e diziam o quanto me amavam e eu só me sentia pior."

"Você tem que pegar leve com você mesmo. O sonho é sempre maior que a realidade."

"É eu sei. Hoje eu sei. Depois que eles morreram eu percebi que os arrependimentos só me atrasariam e que esse nosso andar pra frente na vida é totalmente imprevisível. Um dia você tá bem, no outro se sente horrivel e assim vamos levando as coisas..."

"Pois é... mas acho que atualmente tenho me sentido-"

"Mais horrível do que bem? É eu também."

Os dois ficaram quietos por alguns minutos.

"O que aconteceu com seu vô? O que ele tinha?"

"Mal de Alzheimer."

"Cacete. Você viu ele se esquecer das coisas-"

"Aos poucos, é. De início ele confundia um nome, um número, um endereço. Aí passou a ter crises. Confusão, raiva. Parecia outra pessoa."

"Quanto tempo ele ficou assim?"

"Uns três meses. Cada vez foi ficando pior, cerca de dois meses depois, ele já não me reconhecia mais. Era mais fácil eu inventar que era um amigo ou um vizinho do que tentar convencê-lo de que era eu, seu neto."

"Nossa..."

"Depois foi minha vó. Ele chamava por seu nome, mas parecia que não a via. Mesmo quando ela ficava ao seu lado e o fazia carinho, como sempre fez. Ali eu já estava acabado. Desejava mesmo é que aquilo acabasse. Me sinto horrível por isso."

"Você só queria que ele parasse de sofrer. Não acho que há nada de errado nisso."

"Uma manhã de sábado eu acordei mais tarde, pois estava exausto do dia anterior. Minha vó me avisou que ele não tinha se levantado ainda. Pensei: estranho, ele sempre levanta antes de todo mundo. Então fui vê-lo no quarto e-"

Seus olhos se encheram de lágrimas. Seu rosto se contorcia e retorcia em dezenas de expressões. A moça colocou uma das mãos em seu ombro. Ele enxugou o rosto.

"Me desculpe por isso, mas acho que não comsigo." Ele levantou de súbito do balanço. Andou rápido pra longe. Ela veio logo atrás.

"Ei! Espere um pouco! Vamos falar de outra coisa então! Qualquer coisa!"

"Eu acho que isso foi uma terrível ideia. Tudo isso. Porque eu dei corda? Só porque achei que precisava falar. Eu não preciso! Eu estou bem!"

"Olha, cara, eu não sou psicóloga, mas isso me parece o oposto de bem! Eu e você: nós somos uns ferrados, isso é fato. Mas essa conversa, isso pode nos ajudar! Com quem mais falariamos disso, hein?!"

Ele parou no meio da rua. Ela alguns metros atrás.

"Vamos pra outro lugar então."

"Pode ser... pode ser." Ela disse ofegante.

"Que horas são?"

"São... hã... uma e quarenta e cinco. Cacete, tá tarde."

"Você tem algum compromisso amanhã?"

"Tinha, mas foda-se."

"Vamos até a praia. As ondas ajudam a acalmar a cabeça. Além do mais, não tem ninguém mais lá a essa hora."

"Tem certeza? Não disse que estava fugindo da praia?"

"Sim, e também disse que era meia verdade. Vamos, quero lhe mostrar uma coisa."

Ela olhou com certa desconfiança e ao mesmo tempo curiosidade. Os dois partiram não muito depois.

- a praia -

Ao chegarem na praia, uma escuridão permeava o local. Latinhas e garrafas e copos plásticos estavam jogados pelo chão. Uma folia que passou e desapareceu. No horizonte, uma tempestade explodia em raios e trovões vermelhos, parecia algo de uma ficção-científica. A lua encoberta pelas nuvens jogava um pouco de luz na escuridão.

O rapaz não pensou duas vezes e tirou os sapatos. Ela permaneceu com os seus.

"Vai sujar os sapatos nessa areia. Ela não é firme."

"Não me importo. Esses sapatos são velhos."

"Ganhou eles de alguém?" Ele perguntou curioso.

"O que tá tentando insinuar?"

"Nada. Nada mesmo."

Os dois caminharam pelo litoral, ele mais perto do mar e ela mantendo uma certa distância.

"Será que ainda tá aberto o bar? Queria outra latinha..." Ela questionou.

"Não, acho que não. Já são quase duas da manhã, dúvido que tenha qualquer coisa aberta."

"Que saco."

"Por que tanta tristeza? É só álcool."

"Você não bebe por acaso?"

"Que pergunta é essa? Você me viu bebendo."

"Não é isso. Estou querendo saber se você bebe mesmo. Já ficou bêbado? De ressaca?"

"Não. Eu me controlo."

"Então só bebe socialmente?"

"É. Acho que sim. Na verdade, é bem difícil eu beber. Hoje é um dia especial."

"Eu entendo... quer dizer, entendo que é um dia especial e que fazemos coisas diferentes. Mas não entendo como não bebe."

"Nunca vi muita graça nisso."

"A Vera bebia menos que eu, bem menos... mas isso não impedia a gente de se divertir e acordar com dor de cabeça no ano novo."

"Vocês vinham ver os fogos?"

"Não, a gente achava caído demais. Muito clichê, eu acho. Ficavamos no nosso apartamento vendo a triologia do Duro de Matar e bebendo e rindo."

"Interessante. Eu não vinha a praia, quer dizer, eu moro aqui né, mas eu não saia de casa. Eu e meus avós comemoravamos jogando cartas e cantando. Meu vô tocava violão e minha vó cantava comigo."

"Eram só vocês três?"

"Era."

"Assim que é bom, né? Passar um tempo com quem a gente gosta e não um monte de parentes."

"Eu entendo o que diz, mas no meu caso a gente não tinha muita escolha. A família de meu pai nunca foi presente, assim como ele. E minha mãe e o resto da família era pequena e fragmentada demais. Ninguém se falava, nunca."

"Sua mãe não vinha nem ver os pais dela?"

"Não. Eles brigaram feio e ela disse que nunca mais voltaria. E não voltou."

"Que droga."

"Pois é. Mas ei, ela não me deu nem 1% da vida que meus avós me deram. Eles é quem realmente importavam."

Ela se calou, pensando em tudo o que ele disse. Ele quebrou o silêncio.

"E você? Tem uma família estruturada?" Disse irônico.

"É. Acho que sim. Pelo menos, comparada com a sua."

"Não há muito o que competir mesmo."

Eles ficaram em silêncio e caminharam mais alguns metros. Os trovões ecoavam e vinham abafados. O mar rugia ferozmente, com ondas cada vez maiores que se chocavam na costa. Ele quebrou o silêncio.

"Onde você acha que ela tá agora?"

"Vera?"

"É."

"Em casa, provavelmente. Mas também acho que, se ela ficar, vai lembrar de mim. Afinal, minhas coisas ainda estão lá."

"Ela te expulsou?!"

"É. Falando parece absurdo, mas aquele apartamento é dela mesmo. Eu ajudava com uma conta e outra, mas ultimamente eu to desempregada. E não foi bem uma expulsão... foi mais um tipo de concordância mútua de que eu não era mais bem-vinda."

"Caramba. Que coisa..."

"É. Mas é o jeito que as coisas tem andado."

Ele franziu a testa.

"Tem andado?! A quanto tempo está sem casa?"

"Que horas são agora?"

Ele olhou no seu celular.

"Quase duas e meia."

"Então, a uns quinze minutos atrás fazem dois dias completos."

"Desempregada? Onde está passando a noite?"

"Ontem eu fiquei acordada o dia inteiro. Hoje eu dormi na biblioteca, acredita que aquilo lá fica aberto 24 horas?"

"Não fazia ideia, mas... que loucura. Podia ao menos pedir pra passar a noite em quartos separados lá."

"Sem chance. Ela disse na minha cara que não queria me ver nem ao redor do estacionamento do condomínio."

"Brutal. E como pretende fazer as pazes?"

Ela ficou em silêncio. Nada lhe veio a cabeça.

"Eu não sei. Nem considerei isso ainda."

"Não sabe se vai pedir desculpas?"

"Não, não sei. Eu e ela temos as nossas razões e talvez seja melhor assim."

"Mas não dá pra ficar dormindo na biblioteca. Não tem nenhum familiar que possa-"

"Não, cara, estão todos na puta que pariu! É simples: eu fui uma idiota de vir pra essa cidade. Ponto final!" Esbravejou.

"Calma. Eu só fiz uma pergunta."

"É a sua vez, de qualquer forma."

"Eu tive uma namorada uma vez, que você me lembra dela."

"Que papo, hein?"

"Não! É sério! Ela tinha essa coisa de dar corda pra qualquer situação que aparecesse, nos divertimos muito ouvindo estranhos na rua. Enfim..."

Ela estava atenta, escutando.

"Uma vez nós passamos por uma moça que catava latinhas do chão da praia e provavelmente vendia pra comprar drogas ou algo assim. Pelo menos, era o que a gente pensava..."

"Se não for um incômodo, como se chamava a sua namorada?"

"Renata. Acho que ela já nem mora mais por aqui, continuando..."

Ele limpou a garganta e prosseguiu.

"A Renata deu corda pra moça e perguntou se ela queria uma água ou um lanche e em troca nós poderiamos ouvir sua história. Ela concordou e agradeceu. Sentamos pela sombra, era um dia muito quente..."

"E ela tava lá catando latinha? Essas drogas deviam ser muito boas."

"Nah, o desespero leva as pessoas a fazerem qualquer coisa. Ainda bem que não era nada de ruim, no caso dela."

"Mas você disse que ela não tava comprando droga. Então, o que estava fazendo com o dinheiro?"

"Calma, não atropele a história."

"Está bem."

"Ela nos disse que estava juntando um dinheiro para ir até Londres."

"O quê?! Vendendo latinhas?!"

"Pois é. Aparentemente uma passagem só de ida. Nós também ficamos boquiabertos e curiosos dos porquês da coisa."

"Quem não ficaria."

"Perguntamos o porquê e ela respondeu que havia uma pessoa importante esperando por ela lá. Perguntamos se era família e ela disse que não. Era um amigo de infância que havia vindo passar suas férias por aqui e que por acaso acabou encontrando uma velha amiga."

"Cacete."

"Renata disse a mesma coisa. Ela explicou que eles tiveram um caso enquanto ele estava aqui, mas que ela decidiu terminar porque estava com vergonha. Afinal, ele era um cara bem sucedido e ela a pobretona que vivia do lixo dos outros. Palavras dela, certo?"

"Certo. Mas que bobagem. Se os dois estavam felizes pra que ela foi fazer isso e porque ele não disse nada também?"

"Ele disse muita coisa, segundo ela. Tentou até o último dia a convencer a ir com ele. Ela teve medo de desapontá-lo e deu chá de sumiço nele. Agora, arrependida, procurava guardar todo o seu dinheiro para ir a Londres. E assim o fez: dali a alguns meses, eu e minha namorada descobrimos que ela havia conseguido comprar a pasaagem e que em poucos dias estaria em Londres."

"Caralho, quanto tempo ela ficou pra conseguir esse dinheiro?"

"Eu não sei, mas garanto que foi tempo pra caramba."

"Porra... mas e aí?"

"Bom. Passaram-se mais alguns anos e eu já não estava mais namorando. Acabou que a gente percebeu que não tava mais dando certo... e o pai dela me odiava também... enfim, isso não vem ao caso."

Ele prosseguiu.

"Quando cheguei na praia, pela manhã com meu vô, percebi que eu reconhecia a mulher sentada pela orla, de vestido branco. Era a catadora, agora, completamente diferente. Quase irreconhecível."

"Ela parecia mais saudável, limpa e... até bonita... mas parecia muito triste também."

"Não deu certo o encontro deles?"

"Não. Quando sentei ao seu lado, ela me reconheceu de imediato. Me abraçou e eu pude até sentir um perfume forte e doce. Mas sua tristeza escorria dos olhos, sabe? Ela foi até Londres. Conseguiu um emprego lá e passou a procurar pelo homem, do qual só tinha o nome e a descrição. Eventualmente ela o achou..."

"E aí?"

"E aí que... ele já estava casado, com filhos... Com alguém que, segundo ela, não era tão feia, tão magra, mas principalmente, não era tão burra quanto ela tinha sido. Eu tentei lhe acalmar, mas ela sinceramente me parecia muito calma."

"Ela dizia que o erro não era dele e sim dela. Era demorou de mais pra perceber que ele a amava... e ele? Ele demorou pra seguir em frente. Quando finalmente seguiu, ela apareceu de novo, mas já não havia mais espaço em seu machucado coração."

"Ela tentou falar com ele?"

"Não. Preferiu nem chegar perto. Dessa escolha ela tinha certeza, que nunca mais voltaria pra Londres. Juntou um dinheiro e voltou pra cá. Agora com casa e tudo. E esse foi o fim de tudo..."

"Nunca mais viu ela?"

"Não acho que vai querer ouvir o resto."

"Como assim? Aconteceu mais alguma-"

"Sua vez."

Os dois pararam. Ela ficou calada e com a testa enrugada. Ele, completamente sério.

"Está bem. O que quer saber?"

"Sobre a sua garota. Eu gostaria de lhe ajudar."

"E por que?"

"Porque não quero que acabe como a moça das latinhas. Não quero que se arrependa pro resto da vida, por causa de uma má escolha."

"Acha que eu não me arrependo?! Eu me arrependo pra caralho! Mas a gente não tem mais pra onde ir... ela quer uma coisa e eu outra. Ela reclama disso e eu daquilo. Acabou! Eu devia- eu devia só aceitar isso... não ficar me matando por dentro."

Ele abaixou os olhos. Pensativo. Ela percebeu.

"Desculpa. Não devia ter gritado com você. Eu que dei corda pra essas coisa e..."

"Bobagem. Nós dois concordamos em conversar sobre assuntos dolorosos... deviamos ter ficado com os mares ou o espaço mesmo."

"É verdade. Mas eu ainda te devo um porquê."

"Não, deixa disso! Ninguém deve nada a ninguém."

Os dois ficaram quietos. Somente o som das ondas iam e vinham pela praia. A escuridão era quase que completa e eles já não se enxergavam.

"A gente poderia só ir embora, não acha?" Ele disse.

"É. Se cada um saisse andando, nessa escuridão, não saberíamos onde o outro mora. Já não sabemos os nomes, também... e ficaria por isso."

"Um pequeno desvio da normalidade..."

"É... apenas uma loucura momentânea."

Ele franziu a testa levemente irritado.

"Mas... a gente ainda se veria, pelo menos enquanto estivesse por aqui. Talvez a gente se esbarrasse naquele bar de novo, ou pelas ruas... essa cidade é bem pequena, sabe?"

"É, acho que sim. E eu também já mudei de ideia: não vou embora ainda."

"E por que?"

"Porque você disse que queria me mostrar alguma coisa."

"Oh, sim! Já estamos bem perto. Eu acho..."

Ele puxou o celular do bolso e ligou a lanterna. Ela clareava alguns metros a frente. Seus rostos flutuavam em meio a penumbra da noite e os trovões eclodiam na distância. Prosseguiram na caminhada.

"O que exatamente quer me mostrar?" Perguntou, curiosa.

"É algo muito legal, mas não posso lhe dizer. Na verdade, acho que nem se quisesse, saberia descrever."

"Como não sabe descrever alguma coisa? É uma metáfora pra alguma coisa, por acaso?"

"Não exatamente. É uma sensação. Como o silêncio da praia agora. É um jeito diferente das mesmas coisas de sempre."

"Tipo o silêncio do espaço?"

"É... tipo isso. Só que menos perigoso, mais ou menos..."

Ela ficou em silêncio por alguns segundos, até perceber o que ele tinha dito.

"Mais ou menos? Como ass-"

"Estamos perto."

Os dois pararam diante de uma enorme plataforma que se erguia sobre a praia. Seus gigantescos pilares de madeira atravessavam quase 30 metros de mar e estavam esverdeados pelo tempo.

Ela olhou de baixo pra cima. Não havia ninguém lá também, somente as luzes dos postes na plataforma. Ele seguiu andando reto.

"Vamos subir na plataforma? As escadas são por ali..."

"Não. Nós vamos por baixo dela."

Ela o seguiu, não ao seu lado, como fizera desde que se conheceram, mas atrás. Indo calma e acompanhando seus passos rápidos. Hora ou outra, se esgueirava e olhava por cima de seu ombro, para ver aonde estavam indo. Até que ele parou e se curvou para pegar algo no chão.

"Chegamos?"

"Sim... e não. Ainda falta metade do caminho. Mas agora é a hora da verdade." Ele desenrolou uma corda de um dos pilares da plataforma, ela estava amarrada em algo que boiava na água. Quando a lanterna iluminou a coisa, a garota franziu a testa em um misto de pavor e raiva.

"Um barco?! Nem pensar!"

"Ah, qual é?! É uma canoa, não um barco. E é bem mais fácil do que se tornar astronauta."

"Ah, sim, é tudo o que quero, ficar presa à deriva no meio do mar! Achei que fosse algo realmente interessante." Disse e deu as costas.

"Ei, espere! Como pode tirar conclusões tão precipitadas assim? Você nem viu o que eu quero lhe mostrar."

"Mas terei que entrar no barco pra ver e isso me diz que não vale a pena."

"Por acaso você tem medo do mar?"

Ela se virou, irritada.

"Não! Não é isso! É só que..."

Ele levantou as sobrancelhas, esperando uma resposta. Ela não conseguiu pensar em nada.

"Olha, não tem o que ter medo. E além do mais, se vier comigo, eu lhe ensino a remar. Se não quiser ficar no lugar que quero lhe mostrar, voltamos remando. É simples."

Ela bateu os pés, indecisa e receiosa. Suspirou...

"Ah... tá legal. Mas se eu pedir pra voltar, você volta na hora, me ouviu?!"

"Sim, capitã!" Respondeu, irônico.

E assim ela entrou na pequena canoa. Ele foi empurrando ela pela costa, até que a água chegasse em sua cintura. Então, pulou pra dentro e partiram com os remos.

- o mar -

Já eram exatas três da manhã quando os dois passavam da extensão da plataforma e viam a praia escura lá longe. Ele havia remado metade do caminho e agora ela vinha aprendendo, sob seus comandos, a remar. A lua apareceu novamente e fez seu cintilo por cima da cabeça dos dois.

"Se remar só com a direita, ele vai pra esquerda e-"

"Se remar só com a esquerda, ele vai pra direita... eu sei. Já entendi."

"Certo. Eu só queria reforçar isso, em caso de apavoro."

"Eu to bem cara!" Esbravejou.

Atrás dele, os trovões vermelhos e antes abafados, agora rugiam furiosamente. Ela se assustou.

"O quão perto a gente tá?"

"Pro lugar? Falta pouco."

"Não, quero dizer daquela tempestade ali." Ela apontou com os olhos. Ele se virou.

"Ah, isso acontece direto. Relaxa, tamo longe. Sempre parece mais perto do que realmente é." Deu de ombros.

De repente, uma luz fraca e fosca surgiu na água.

"Pare!" Ele segurou as mãos dela. Os remos pararam.

"O que foi?!"

"Chegamos." Ele sorriu.

Ela olhou para a água. Inúmeras luzes começaram a surgir, de várias cores e intensidades diferentes. Elas lentamente subiam e iluminavam a canoa cada vez mais.

"O que é isso? É tão... bonito."

"Shh! Quando chegam a superfície, elas são sensíveis ao som." Disse num sussurro.

As luzes se reuniam em volta da canoa. Dançavam como planetas, orbitando umas as outras. As cores se misturavam na dança, formando novos tons, novas cores...

Era possível ouvir as pequenas criaturas nadando na água a velocidades inimagináveis. O show durou alguns minutos e o silêncio era avassalador. Os trovões cessaram momentaneamente, como se dessem espaço para o show. A lua também desapareceu naquele instante.

Quando as luzes eventualmente se foram, tudo escureceu. Os dois estavam sozinhos e sem ver um ao outro, mais uma vez.

"E aí? O que achou?"

"Foi incrível... o que são essas coisas?"

"São o tipo de coisa que não vai encontrar no espaço."

Ela riu.

"Não, é sério cara, que criaturas são essas?"

Ele riu.

"São uma espécie pouco conhecida de águas-vivas. Não sei qual é o nome científico, mas sei que só são desta região e que meu avô as chamava de Águas-vivas Lunares."

"Águas-vivas Lunares..."

"É... ele dizia que elas brilham assim porque tentam imitar o brilho da lua no céu. É uma história bonitinha."

"É, mesmo."

A lua apareceu no céu de novo. Seus rostos, agora pouco iluminados, começavam a se acostumar com a luz. Ficaram em silêncio por mais algum tempo. Ele veio a romper.

"Mas e agora? Quer voltar pra costa?"

"Não. Eu quero ficar mais um pouco... nesse silêncio..."

"Eu lhe disse que era bom. E indescritível também, é o tipo de coisa que só se pode ver a essa hora da madrugada."

"Quantas vezes você já veio aqui?"

"Enquanto meus avós estavam vivos, todos os dias. Mas desde então eu tinha dado uma parada."

"E quanto tempo faz isso?"

"Um ano e meio. Na verdade, quase dois."

"Caralho. Você deixou isso de lado por dois anos?! Eu teria vindo aqui pra limpar a cabeça."

"Eu também, se esse lugar não estivesse impregnado de memórias dos meus avós."

"Putz... não tinha pensado por esse lado."

"É, mas acho que daqui pra frente as coisas vão ser diferentes."

"Por que?"

"Porque você deu uma ressignificada nisso. Na verdade, uma esperança de poder ressignificar tudo."

"Acha que algum dia vai deixar de pensar neles?"

"Talvez. Mas eu espero que não... quero ao menos me lembrar das coisas boas, se possível, sem ter que sofrer pela falta. Mas acho que nada disso nunca irá embora. Só ficará menor mesmo."

"É... acho que sim. Espero que você possa voltar aqui todo o dia."

"Eu também. Eu também..."

Os dois ficaram em silêncio. A trovoada rugia cada vez mais alto e os raios iluminavam o horizonte.

"Estamos realmente longe daquilo?"

"Se está com medo, podemos voltar pra costa. É só remar ao contrário..."

"Eu sei como voltar. Estou perguntando se aquilo não vai chegar na gente de surpresa!"

"Não... acho que não." Disse enquanto olhava pra trás. "Mas agora está um pouco mais perto do que antes."

Eram três e vinte e sete. Os dois permaneciam no barco, rindo e conversando.

"Ei... sobre aquela história que voxê me contou..."

"Qual?"

"A da moça que foi pra Londres. O que aconteceu com ela?"

Ele se calou.

"É sério cara, você fez parecer que a vida dela acabou ali. O que ela fez? Ou você nunca mais viu ela?"

"Tem certeza de que quer saber disso? A moral da história já me parece o suficiente pro seu caso, não acho que vai gostar do que vem depois do fim..."

"Eu nem entendi o que era pra ser a moral da história aqui. Não ir atrás de um ricasso em Londres? Não acho que isso se aplica a minha vida. Diz logo o que houve, cara."

"Está bem. Eu vi ela. Uma última vez, quando cuidava dos papéis de meu vô..."

"Papéis? Que papéis?"

"O obituário."

Ela ficou séria. Ele continuou.

"Eu vi uma lápide no cemitério... reconhecia o nome de algum lugar. Era ela... foi a última vez que a vi, sem vida é claro. Com vida eu a vi na praia."

"Meu Deus... mas o que houve?"

"Eu fiquei curioso também. Ela parecia triste mas havia me dito que ia cursar psicologia, que ia se formar, que ia..."

Ele parou, quieto e com um olhar caído. Parecia não estar ali. Comtinuou.

"Ela se enforcou no varal do apartamento. Acho que não conseguiu ver motivo pra... bem... você entendeu."

"Cacete..."

"Eu disse que não gostaria de ouvir o final."

"É... mas acho que agora eu entendo melhor o que me disse antes. Eu me arrependo também, mas acho que não sou como ela, se isso lhe deixa mais tranquilo."

"Ela não era assim. Ela ficou assim. Esse é o meu medo."

Ela ficou quieta.

"E você tem vivido em condições estressantes. Se continuar desse jeito, sabe lá onde vai parar. Entende?"

"Eu sei. Eu penso sobre isso, as vezes. Mas o que posso fazer? Não tenho pra onde ir. Simplesmente não tenho."

"Eu sei. Entendo isso. Só estou dizendo pra tentar conversar com ela. Eu não sei pelo que vocês passaram ou não passaram... mas não seja que nem a minha conhecida: ela pôs na cabeça que estava acabado e terminou em um caixão. Você ainda pode ao menos tentar."

Ela ficou calada. Seus lábios tremiam.

Gotas de chuva começaram a cair.

"Desculpe. Eu não queria pressioná-la. Não devia nem me meter nisso. Vamos voltar?"

"Vamos." Ela disse, cabisbaixa.

"Ei! Eu sei que você não é ela. Eu sei disso. Você pediu o fim da história e eu lhe dei. Agora, se isso lhe faz mal, esqueça disso."

"Tá legal, cara. Eu já entendi. Não estou magoada com você. É como disse: nós escolhemos falar sobre essas coisas dolorosas..."

"É... mas-" Um trovão estralou muito perto dos dois. Eles pularam de susto.

"Caralho! Você não disse que isso tava longe?!"

"Bom, a cinco minutos atrás não estava tão perto!"

Mais um trovão rasgou os céus e eclodiu no mar. O som era tão alto queos dois tiveram que tampar seus ouvidos.

"Passe os remos pra cá!"

"Aqui!" Ela jogou os remos.

Ele começou a remar. A chuva ficou mais forte. Haviam boiado para tão longe que ele já não via nem mesmo a plataforma. Os raios chegavam cada vez mais perto e ela podia enxergar faíscas elétricas na água. Ele se apressava cada vez mais a medida que ouvia os trovões.

"Vamos! Mais rápido! Os raios estão muito perto!" Ela gritava.

"Eu sei! Estou ouvindo eles!"

As ondas começavam a se intensificar e balançar a canoa com cada vez mais força. A garota se segurava nas laterais e ele remava com mais força, mas o vento estava contra ele.

A chuva se intensificou mais e agora não era possível nem ouvir sua própria voz. A garota gritava e esperneava na sua frente e ele tentava se concentrar no que havia a frente. Ele ainda não via sinal da praia, nem da plataforma.

De repente, um raio caiu a sua direita. Perto o suficiente para que seus cabelos todos arrepiassem e a luz quase o cegasse. Ela fechou os olhos e abaixou-se com medo. As ondas balançavam cada vez mais a canoa e logo havia água dentro dela. A garota estava encharcada, ele também. Cada raio que caia ele sentia uma adrenalina absoluta invadir seu corpo dos pés a cabeça, além de uma corrente elétrica e estática que lhe arrepiava por completo. Seus braços doíam e mesmo assim ele prosseguia, fazendo cada vez mais força.

De súbito, uma onda maior que todas as outras levou um de seus remos. Ele mesmo quase foi junto, mas a garota o segurou. Quando ela percebeu que ele não tinha um dos remos ela gritou de desespero, mas a chuva e os trovões abafaram seu grito.

Ele tentou remar só com um remo, mas se com dois já era difícil, com um a tarefa se tornou impossível. Desistiu rápido. Olhou para trás e viu a enorme tempestade que estava quase sobre sua cabeça. Ficou inerte. Não sabia o que fazer.

Ela o abraçou e o sacudiu, esperando uma resposta. Mas antes que ele se virasse e voltasse para si, outra onda bateu na canoa. Ela virou e os dois foram pra água.

Debaixo da água ele voltou a si. Abriu os olhos. Não escutava som nenhum, apenas a chuva que contra a água era fraca e apenas pipocava acima de sua cabeça. Viu então a garota. Completamente desacordada, afundando. Nadou até ela e a segurou continuou a nadar a arrastando com seus braços cansados. Se sua bússola mental ainda estava correta, a praia continuava adiante.

E então ele nadou e nadou e nadou. Os trovões ficaram casa vez mais distantes e a chuva cada vez mais fraca. De repente, ele via de longe: a plataforma! E com ela a praia também!

Ele forçou-se até o seu limite e quando chegou a costa, tentou ouvir a respiração da garota. Ouviu apenas bolhas.

E pôs-se a fazer compressões torácicas. Um, dois. Um, dois. Um, dois. Colocou o ouvido sobre seu nariz... nada. Um, dois. Um, dois. Um-

Ela se ergueu de súbito. Tossiu água e continuou tossindo até quase vomitar. Ele deu um tapa em suas costas, para ajudar. Ela respirou fundo e ofegante.

"Caralho, eu não ia me perdoar se você morrese por causa de mim."

Ela tentou recobrir a respiração e riu.

"É a primeira vez que eu ouço você falando um palavrão..."

Ele riu, aliviado.

"É bom saber que você não bateu a cabeça numa pedra e continua a mesma."

"Cara, você é um herói..."

Ele riu.

"...E um desgraçado também! Longe né? Longe... a tempestade tava na nosa cola!"

"Você que tava vendo ela poxa, podia ter me avisado." Disse rindo.

Ela riu e caiu pra trás, deitada na areia. Ele colapsou de cansaço.

"Garoto? Ei!"

Ela mexeu nele. Nenhum sinal de consciência, mas estava respirando.

Então ela se deitou na areia e simplesmente fechou os olhos.

- a manhã -

O Sol começava a subir quando ela acordou. Se levantou rapidamente e olhou para os lados. Quando finalmente o viu, se acalmou.

"Surpresa. Eu ainda não fui embora."

"O Sol já tá aqui... Que horas são?"

"Sinto muito, mas o meu celular não tá ligando. Acredito que o seu também não esteja. Mas pela posição do Sol, considerando que é verão, eu diria que são umas cinco e meia, seis da manhã."

"É... Eu perdi mesmo meu compromisso."

"E o que era?"

"Era uma reunião da empresa que eu fundei com a minha namorada. Mas acho que ela já espera que não apareça."

"Tem certeza que isso não-"

"Ei. Não precisa se preocupar. Eu vou falar com ela, tá legal?"

Ele acenou positivamente com a cabeça.

"Mas agora, eu to ferrada se não conseguir voltar pra casa." Disse enquanto apalpava suas roupas encharcadas e cheias de areia.

"A biblioteca não tem chuveiro?" Ele brincou.

Ela riu.

"Infelizmente ela não chegou nesse nível... mas quem sabe algum dia."

Os dois ficaram quietos. Ela se lembrou de algo.

"A gente falou sobre muitas coisas hoje."

"É... pois é."

"Você me ajudou... eu acho que te ajudei também..."

"Sim."

"...mas ainda falta uma coisa não resolvida."

"O que?"

"Por que tem vergonha de ser técnico de informática?"

Ele franziu a testa, num misto de confusão e irritação.

"Eu não..."

"Oh, sim. Você deu uma descrição ambígua da profissão, depois ficou mudando de assunto... não vem com essa."

"Mas o que quer que eu diga? Não há nada a dizer."

"Diga que tem vergonha, ué."

"Maa pra que? Não tem-"

"Você é quem gosta dos porquês. Vamos, admita!"

"Tá legal. Eu admito que sinto vergonha, feliz?"

"Não. Não. Não quero que você se humilhe, não é sobre isso. Me diga o porquê. É uma profissão como qualquer outra."

"Mas umas profissões são mais legais que as outras."

"Mas todas são igualmente necessárias."

"Certo, mas eu não me vejo seguindo carreira nessa."

"Não precisa seguir, ninguém tá te obrigando."

Ele se calou. Algo que nunca havia passado pela sua cabeça acabava de achar veredas novas em sua mente.

"É verdade... não mais."

Ela olhou confusa.

"O quê? Tinha alguém que-"

De repente, se freou. Percebeu a verdade.

"Sim. Mas pelo seu silêncio você já deve saber quem é."

"Seus avós."

"É... mais especificamente, minha avó. Ela dizia que eu era o menino tecnologia. E eu era mesmo, só que hoje... não sou mais tão bom nisso."

"Poxa, eu estraguei tudo de novo, não foi?"

"Não! Não! Jamais. Você me fez perceber algo óbvio na verdade. Eles não estão mais aqui e... eu acho que gostariam mesmo é que eu fosse atrás das minhas verdadeiras paixões, sabe?"

"E quais são elas?"

"Majoritariamente: a escrita. Em segundo plano, talvez, matemática."

"Um homem das exatas e humanas. Como consegue entender dois lados tão distintos?"

"Se olhar de longe o bastante e sem óculos, é tudo a mesma coisa."

"Se você diz..."

Novamente o silêncio se intrometreu na conversa, mas desta vez ele foi longo, durou minutos. Quando terminou, veio munido de uma tristeza. O Sol agora estava mais alto e as pessoas começavam a chegar na praia. Logo logo, o tempo a sós se esgotaria.

"As pessoas acordaram cedo hoje."

"Pois é, também pensei que estariam de ressaca. Mas a grande maioria quer aproveitar ao máximo as férias e seus últimos dias aqui. Dia 01 marca o início disso, mas estarão aqui até março."

"Aquele silêncio bom vai tendo o seu fim. Assim como nosso encontro." Ela abaixou os olhos, numa tristeza parecida com a de quando olhava para o copo, lá atrás, quando ainda estava no bar.

"Encontro? Tá sendo muito educada. Isso foi um desastre..." Ela permaneceu olhando para baixo. Um pouco chateada. Ele continuou: "...mas de um bom jeito, sabe?"

"Acho que só eu entendo perfeitamente o que quer dizer."

"Isso é verdade. Foi uma experiência única."

Ela se levantou e tirou a areia das pernas. Ele também.

"Então é isso?"

"Acho que sim." Ele respondeu.

E deu um sorriso educado, mas seus olhos mostravam o oposto de alegria. Uma saudade ainda nem possível de existir o acometia. Era dela. Saudade dela. Dessas conversas todas.

Ela permanecia olhando pro chão. Quando ele disse tchau ela se virou para ele e apenas acenou. As pessoas invadiram a praia. Uma barreira entre os dois surgiu a medida que as pessoas se atravessavam entre eles.

Ela foi para um lado e ele para o outro. Andaram alguns poucos metros e pararam quase que simultaneamente.

Os dois se viraram. Seus olhares foram diretos, um para o outro. Não havia vergonha alguma agora: eles se conheciam. Quem visse de longe, poderia até dizer que eram amigos de longa data, de décadas e décadas passadas... mas os dois eram novos de mais para isso e haviam se conhecido há menos de 7 horas. Por um acidente. Uma piada de algum escritor...

Ela andou na direção dele e ele na dela. Os dois atravesaram as pessoas como se nadassem contra uma correnteza. As bocas fechadas, um silêncio, uma conversa psíquica pra ver quem vai se abrir primeiro. Quem vai dizer...

"Uma última coisa-" Os dois disseram ao mesmo tempo e se frearam logo em seguida.

"Ah, não, você primeiro-" Os dois disseram simultaneamente, mais uma vez. Riram alto. Gargalharam de verdade.

"Está bem, eu vou primeiro..." Ele declamou.

"Não, não. Agora eu quero falar primeiro!" Ela respondeu.

"Está bem... diga."

"Bom. É que a gente falou e falou sem parar e... eu nem sei seu nome..."

Ele ficou um pouco mais sério. O sorriso se desfez de leve.

"Eu entendo, também queria saber o seu mas... tem certeza de que é uma boa ideia?"

"Tenho, eu lhe conheço! Por que não seria?"

"Não é nada sério. Talvez não seja nem algo de verdade, mas você não acha que isso tudo só deu certo pra gente porque não nos conhecemos de fato?"

"O que? Como assim? Você falou suas coisas pra mim e eu pra você- não poderia ser a maior mentira, isso que você me diz."

"Eu sei, mas- não teve essa impressão também? Não tem medo de estragarmos essa coisa boa que construimos apenas aqui e agora, nesse dia, nessa hora?"

"Não!" Disse confiante. "Eu não acho."

"Mas talvez se-"

"Vera." Disse sucintamente e estendeu a mão.

"Seu nome é Primavera?" Respondeu incrédulo.

"Sim, mas todos me chamam de Vera. Agora me diga o seu." Estendeu ainda mais a mão para ele.

"Bem- eu..."

"Anda logo!"

"Tá! Tá bom! Eu me chamo Renato." E apertou a mão dela, em um cumprimento.

"Renato?" Ela riu.

"O que há de engraçado nisso?"

"Nada, é só... que você tem mais cara de... sei lá! Felipe, Henrique, Pedro, João..."

"E você não se parece com nenhuma Vera que eu conheço."

"E conhece alguma? Além de mim?"

"Sim, uma. Irmã da minha vó. Mas não há vejo a anos e seu nome é Verônica."

"É... eu devia imaginar que era alguma velha. Sempre dizem que é nome de velha."

"Bom, é 2024 né? Não 1960."

"Cala a boca!"

Ele riu.

"Além do mais, é 2025 já, esqueceu bobão?"

"Cacete, agora eu to me sentindo velho."

Os dois ficaram em silêncio mais uma vez, mas desta vez ele era cheio de alegria. Uma felicidade incontida nos corações vibrantes. Renato, franziu a testa de repente. Vera ficou preocupada.

"O que houve?"

"Não, é... é só uma dúvida que me surgiu agora."

"Hm?"

"Você disse que namorava com Primavera, mas esse é seu nome. Qual o nome de verdade dela?

Ela riu.

"Qual é!? A essa altura eu deveria poder saber o nome de verdade dela, não?"

"Sim, sim! É claro." Disse rindo.

"Então... qual o nome dela?"

"Primavera." Disse e gargalhou alto.

"O que? Vocês tem o mesmo nome?"

"Sim, bobão. E é tão absurdo que ninguém acredita!"

"Caramba."

"Foi assim que a gente se conheceu... eu vi o nome dela num vale e tive que puxar papo."

"Só falta você me dizer que o nome do negócio de vocês é Estações." Disse rindo.

"Então..."

"Não acredito-"

Ela riu.

"É brincadeira, o nome é Florisma. Mas Estações seria um bom nome."

"Se trocar, eu quero uma porcentagem."

Os dois riram.

Um silêncio leve se instaurou novamente. Mas dessa vezes, já haviam muitas pessoas na praia. O suficiente para não se ouvir o som das ondas batendo na areia.

"Bom, eu acho que é isso então..." Ela disse.

"É. Acho que dessa vez terminamos."

"Eu queria te passar o meu contato mas meu celular..."

"É o meu também. Mas ei, você sabe como chegar até a plataforma, não sabe?"

"Acho que eu nunca mais vou me esquecer."

Ele riu.

"Então, eu moro ali." Apontou pra uma casinha atrás da plataforma.

"Ali?! Esse tempo todo a gente tava na frente da sua casa."

"É. Inclusive se eu fosse embora antes, você teria me visto entrando lá."

"Então isso era um plano, no fim das contas."

"Bom, você tem as suas surpresas e eu as minhas."

Ela riu.

"Ai... ai... a Vera tem que te conhecer..."

"Acha mesmo que ela vai querer ver o cara que quase destruiu o relacionamento dela."

"Cala a boca. Você só me ajudou a decidir e no caminho... por escolha minha, eu quase desisti de tudo."

"É... tem razão."

"Bom, agora que sei onde mora, talvez eu lhe visite algum fim de semana."

"Fim de semana não rola, só segunda ou quarta."

"Por que?"

"Porque eu vou estar trabalhando."

"Ah... entendi. Você é um fudido."

"Eu tenho que terminar de pagar o caixão dos véio, né?"

Ela riu alto.

"Ai, desculpa. Eu não esperava essa frase..."

Ele riu.

"Não, não... ri mesmo. É melhor do que chorar. E pelo menos eu já to quase quitando as contas."

"Isso é bom."

"É."

E ficaram em silêncio de novo. O Sol já estava bem alto e a praia lotada. Nesse momento um olhou pro outro.

"Bom. Te vejo por aí, então?" Vera disse, se despedindo.

"É. Te vejo por aí." Renato respondeu já virando as costas e acenando.

Na manhã do dia 01 de janeiro de 2025, as sete e vinte e três da manhã, Renato e Primavera se despediram um do outro. Encerrando a primeira de muitas conversas e começando uma amizade que duraria até o fim de suas vidas.

Dali em diante, as duas pessoas que entraram naquele bar nunca mais foram as mesmas.

"E é nas ruas dessa vida, que os bêbados se cruzam, para entenderem suas dores e afogarem suas mágoas."

Fim.