Quem foi John Bryan

Nos reencontramos após muitos anos, conversávamos em tons suaves, quase um sussurro, sobre antigos amigos de trabalho que se afastaram e desapareceram. Não sabíamos que caminho as suas vidas tomaram, para onde foram ou o que estavam fazendo. Às vezes alguém projetava um nome. Quem se lembra do Mauro? Por alguns minutos, emudecidos, um tímido sorriso se delineava em nossos lábios. Nos fragmentos da memória surgia um rosto esquecido, os anos de labuta e mais um colega que havia se perdido na estrada da vida. Quem sabe algo sobre o Francisco? Alguém tem alguma notícia? Ainda está vivo? A quietude respondia todas as perguntas. Nesse silêncio, as coroas de flores farfalhavam seus perfumes no velório.

Por alguns segundos ficamos taciturnos e eis que alguém evocou o nome do John Bryan.

“Coitado” disse Otávio, vocês o conheciam na empresa de relance, só de vista, faziam algumas saudações nos encontros casuais, às vezes até conversavam com ele, mas não era uma amizade de chamá-lo para um happy hour e beber um chopp no bar. John Bryan era de uma família abastada, um rapaz exemplar, talentoso, bem educado, quase um poliglota. Falava seis línguas e estava estudando para dominar dez idiomas.

Ele planejava viajar de férias, tirar um ano sabático, para conhecer esses países, quando dominasse todas essas linguagens. Tinha um inglês fluente, parecia que havia nascido nos Estados Unidos e dizia que sonhava na língua do tio Sam. Residiu e estudou por dois anos na Universidade de Columbia, em Nova Iorque.

Reencontrei-o há dez anos, ele estava num péssimo estado, irreconhecível. Depois que ele passou uma breve temporada encarcerado. Uma história que vivenciei.

Ele possuía um comportamento incorrigível. Não era alcoólatra. Nem viciado em jogos ou dependente químico. Com agilidade subtraia tudo que estava ao alcance da sua mão. Saqueava como uma ave de rapina. Sem nenhuma distinção, furtava uma jóia, um relógio ou um chinelo haviana. Desprezava o valor dos objetos, tamanho, volume e dimensões. Na verdade nem se importava com a sua utilidade e nem sequer sabia o que faria com o artigo, usar ou revender. Seu prazer consistia somente no ato de fazer aquilo que queria: roubar. Sua família e os amigos mais próximos faziam de tudo para trazê-lo de volta à razão. Ressaltavamos sua alma caridosa, sua educação, com muito carinho. Repreendiamos e ameaçavamos. Ele, cabisbaixo, concordava conosco. Dizia que ia parar, mas a razão, os bons costumes, não o venciam, seu instinto era mais forte, recaía.

Quantas vezes desconhecidos não o repreenderam, não o humilharam em lugares públicos, inúmeras vezes o pegaram em flagrante, nessas ocasiões, família e amigos, tinham de tomar atitudes inacreditáveis para amenizar as consequências dos seus atos. Certa vez, num luxuoso shopping center, foi surpreendido por um homem do qual ele havia afanado a carteira. Segurando seu braço com firmeza o senhor entregou-o a um policial, John Bryan foi algemado e levado para a delegacia mais próxima.

A família tentou salvá-lo, mas são as palavras que decidem o valor de uma poesia como o destino de um homem. Usaram todos os argumentos possíveis para provar que ele era um cleptomaníaco, um doente, não um larápio. Aqueles que o conheciam sabiam que ele era um cleptomaníaco que precisava de tratamento. Para o policial que não o conhecia era um gatuno. O juiz também não o conhecia e como havia passagens na polícia, era um reincidente, sentenciou-o como ladrão. Foi condenado a dois anos de prisão.

Depois que ele foi solto, um dia ele apareceu na minha casa todo esfomeado, maltrapilho e irreconhecível. Os dois anos na prisão deixaram-no franzino, mais pálido que um lençol branco, olhos vermelhos e com uma aparência anêmica. Implorou que não o abandonasse, que o ajudasse e lhe arranjasse um trabalho. Sabendo que ele era um cleptomaníaco, não deveria indicá-lo para um trabalho que tivesse contato com nenhum bem material. Numa loja de shopping como atendente, sem cogitação. Na construção civil, ele não tinha experiência além do que estava tão fraco que não aguentaria o batente. O jeito era na área das finanças como contador; números, cálculos, gráficos, balanço, porque John Bryan tinha se formado em economia. O importante seria que ele não tivesse nenhum contato com o papel moeda. Dinheiro. Procurei um conhecido que tinha uma empresa, recomendei-o, com todas as ressalvas do seu problema de saúde mental. O empresário entendeu a situação, como era um homem compreensivo e bondoso, desejava ajudar o rapaz e incumbiu-o de organizar as contas, as despesas e o lucro da sua empresa, no formato de um único documento oficial que era o balanço anual.

Os funcionários da contabilidade trouxeram os papéis, tudo organizado, separados e presos com elásticos e grampos. Tinha notas fiscais das compras, carnês dos impostos, faturas para pagamentos e recebimentos. O relatório dos vencimentos dos funcionários. Boleto da segurança social. Contas de luz, água e comunicação. Recibos dos aluguéis. Esses papéis, todos separados, vinham com suas respectivas soma total, era só copiar os resultados para o balanço da empresa.

Fiquei contente por ajudá-lo, feliz por ele retornar à sua atividade profissional. Começou com tanto afinco que após duas semanas, antes do prazo estabelecido, entregou o balancete anual da empresa.

Passados alguns dias, o empresário através da sua secretária, comunicou-me que o trabalho era inutilizável, por isso não estava disposto a fazer nenhum pagamento. Fiquei indignado. Como não tinha um conhecimento profundo e sim o básico na contabilidade, então fui até à empresa para saber o que estava acontecendo e tentar contornar essa situação desagradável.

O empresário, sem nada dizer, entregou-me o manuscrito. John Bryan fez o balanço no capricho, páginas numeradas, para cada descritivo uma cor. Uma bela apresentação. Leitura fácil e meticulosa. Comecei a ler os resultados. O valor das despesas no lugar certo. Valores a receber. Imposto a pagar em destaque. Caixa positivo. Vencimentos dos funcionários mencionado. Contribuição social apontada. Créditos futuros. Total da dívida. Surpreso, questionei o empresário qual seria o defeito encontrado. Ele entregou-me toda a documentação, os papéis com as somas, de forma silenciosa e solicitou que eu comparasse os resultados dos valores totais com o apontado no balanço. Por trinta minutos, com a devida atenção, mergulhei na documentação original e no resumo. No final, desgostoso, verifiquei que o empresário estava coberto de razão.

Por que ele fez isso? John Bryan não fez o mínimo sequer de copiar os resultados originais para o balanço. Ele realizou um belo trabalho e as contas estavam todas corretas. Não houve prejuízo e a empresa teve resultado positivo, mediante aquele balanço falso. Afinal, qual é a explicação, por que um rapaz que estudou finanças em uma universidade nos Estados Unidos, que tinha conhecimento de contabilidade, fez uma coisa dessa?

Envergonhado, despedi-me do empresário. Mas antes de sair pedi uma cópia dos valores originais e do balanço, porque estava intrigado pelo enigma desta história. Refletia que nunca havia conhecido uma pessoa tão enigmática igual ao John Bryan. Com todo esse material, continuei a minha comparação, fiz um resumo do dinheiro que desapareceu no balanço.

No início fiquei confuso, mas aos poucos, analisando os números apresentados, cheguei à seguinte conclusão. Prestem atenção! O valor total das despesas gerais nos originais marcava cem mil reais, ele apontou setenta mil. Neste primeiro item fiquei indignado, arregalei os olhos e continuei a análise. Nos impostos a pagar, outra surpresa desagradavel, no original duzentos mil, anotou sessenta. A gratificação da diretoria não constava no cálculo, ele anulou. E por aí afora. Resumindo. Todos os valores no balanço eram inferiores aos da documentação original ou desapareceram. Por um momento, pensei, John Bryan refez todas as somas e chegou noutro resultado. Mas para cada documentação apresentada, havia duas tiras do rolo da calculadora confirmando o resultado. Entenderam o que esse desmiolado contador fizera? Diminuiu os valores ou eliminou-os, sem nenhum constrangimento, vocês acham que ele merecia uma outra oportunidade?

Eu sabia que John Bryan havia roubado jóias, relógios, carteira, chinelo haviana nas lojas, isso era de imperdoável leviandade. Tudo isso girava na minha cabeça. A surpresa aumentou ao constatar, sem nenhuma dúvida, porque contra fatos não há argumentos, que seu modo de subtrair estendia-se além do objeto físico para o imaginário. Por onde o contador passava com a sua caneta, um valor a menos anotava, sem respeitar os compromissos financeiros, os trabalhadores e a propriedade privada.

Durante uma semana falei com os familiares e amigos. Juntei todos os depoimentos, fiz uma análise deste caso porque desejava entendê-lo para ajudá-lo. Descobri que o volume de dinheiro que o nosso desvirtuoso colega de trabalho fez desaparecer no balanço da empresa foi de dois milhões de reais. Nas jóias foram vinte mil. Relógio quinze mil. Anéis de ouro trinta mil. Pequenos objetos vinte mil. Roubo de carteira dez mil e muitos outros chegando a um total de quase três milhões de reais. Quando era o papel moeda, dinheiro, tirava uma parte, metade ou trinta por cento e gastava tudo no seu lazer. Fiquei pasmo. Onde estavam os objetos roubados, a prova do crime, revendeu tudo por qualquer valor inferior e ofertou o dinheiro a vários desconhecidos que encontrava na rua. Nada ficou com ele. O que existia estava no meu papel que apurei, nada de objeto que comprovasse o delito, somente na imaginação.

Qual era o motivo da sua conduta? Ninguém sabia. Nem ele. Poderia continuar com a minha investigação, mas ela seria longa, então achei que não valeria a pena prosseguir, Tudo isso me convenceu de que ele era dependente de um vício criminoso, roubar, um cleptomaníaco. Segundo os médicos, após vários tratamentos e internações, o diagnóstico do estado de saúde mental dele era incurável. Nada poderia ser feito, além dele ingerir os medicamentos e ficar dopado. Não havia esperança de cura. Como eu não podia fazer mais nada por aquele pobre rapaz, retirei minha proteção, entreguei-o ao seu destino e nunca mais ouvi falar de John Bryan.