O espião noturno da Rua do Sossego

Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE. 19 de novembro de 2024

Em uma rua estreita e sem saída, de um bairro afastado do centro da cidade, reinava a tranquilidade e a paz entre seus vizinhos. De um lado e do outro dessa rua, havia dois blocos de edifícios, um de frente para o outro, construção antiga, quatro andares, janelas amplas que permaneciam abertas o dia todo, mesmo em períodos noturnos. O intenso calor reinante nessa cidade os obrigava a isso. Seus moradores, cientes da lealdade reinante entre eles, não se importavam em deixar as janelas abertas. Todos se conheciam e não haveria necessidade de se enclausurarem em seus domínios, principalmente nos quartos, onde pessoas trocavam roupas, se deitavam em suas camas à vontade, isto é, com apenas roupas íntimas, sabiam que ninguém estaria olhando para eles.

Com a morte de uma das moradoras, viúva, que havia teimado em não deixar o seu ninho de amor, vivido entre ela e seu marido, durante os 64 anos de casados, tornou-se preocupação dos vizinhos. A pergunta corrente era: quem vai ocupar o apartamento do terceiro andar, pertencente à senhora Maria dos Prazeres Amaral? O casal não teve filhos, ninguém conhecia qualquer parente da agora defunta, nem tampouco do marido, falecido há dez anos.

Uma legião de espiões passou a cuidar da casa da falecida, preocupados em saber quem iria substituir a moradora, que nunca trouxera problemas para a comunidade. Naquele logradouro reinava total confiança e completa harmonia. Nem as crianças traziam dissabores para os pais, por causa de brigas e desentendimentos entre elas. Assim, objetivando realizar uma sindicância em relação aos novos vizinhos, um grupo de moradores se comprometeu a vasculhar a vida pregressa dos que, porventura, viessem a ocupar o apartamento da idosa senhora, recém falecida, para evitar futuros dissabores.

Certo dia, um homem idoso, entre 60 e 65 anos, chegou trazendo duas malas e alguns outros objetos, retirou do bolso uma penca de chaves, subiu às escadas, foi até o quarto andar, parou em frente ao 406, colocou uma chave na fechadura da porta, abrindo-a. Esperou alguns minutos, olhando de um lado ao outro, para ver se alguém o espionava. Depois, adentrou no apartamento desocupado, fechando-o em seguida. Daquela hora até a manhã do outro dia ninguém mais viu o homem, aumentando a curiosidade geral.

Alguém especulou que ele passara a noite inteira, com a luz do quarto que dava para a rua sem saída, acesa. Esse alguém ainda disse que às duas da manhã fora dormir, pois teria que trabalhar a partir das oito horas, e que a luz do quarto do estranho homem, permanecera acesa. Essas informações deixaram alguns moradores mais excitados, queriam logo partir para a ignorância. Outros pediram calma, argumentado que talvez ele estivesse arrumando as roupas e objetos trazidos. Mais uma vez a turma do “deixa disso”, entrou em ação; vamos esperar! Todos concordaram e ficaram quietos.

Naquela manhã, as senhoras de alguns apartamentos, ficaram na expectativa de ver o homem sair. Nada aconteceu, o indivíduo novato continuava invisível. Nem no período da tarde ele deu o ar da graça. Na noite seguinte, a partir das oito horas, novamente o misterioso não deu sinal de vida. Àquela luz acesa, a especulação aumentava. Um morador percebeu, depois das onze horas, um vulto andando de um lado para o outro, às vezes colocava a cabeça fora da janela e espionava o apartamento em frente, só que no terceiro andar. A certa altura, ele apagou a luz e ficou “brechando” por entre as duas bandas da cortina. Por mais de uma hora ficou assim, fechava e abria esses dois panos da cortina, talvez esperando que alguém aparecesse para trocar de roupa e dormir.

Ali, todas as janelas ficavam totalmente abertas, o calor era intenso. Ninguém se prestava a ficar espionando as janelas dos outros apartamentos. Então, aquele homem era praticante do voyeurismo, sentenciou algum morador, dando uma de conhecedor do idioma francês. Houve um burburinho, todos queriam saber o significado daquela palavra. Todos se olharam, querendo uma resposta. Novamente o introdutor da palavra francesa apressou-se em explicar do que se tratava: ─ a pessoa que se excita sexualmente ao observar a cópula praticada por outro, ou ao ver os órgãos genitais de outrem, independentemente de qualquer atividade própria; também conhecida como mixoscopia.

Alguém perguntou ao seu lado, por que usam nomes difíceis para definir certas atitudes do ser humano, isto é, se ele é mesmo um ser humano?

─ Isso eu não sei, mas vamos ter cuidado e preservar nossa intimidade, a nossa privacidade. Isso é um ato de agressão, e é criminalmente tipificado. O voyeur, aquele que pratica voyeurismo, pode ser considerado um criminoso, quando o observado se sinta invadido em sua vida íntima. Nesses casos, faz-se necessário abrir um BO na delegacia. A primeira atitude de quem pratica esses atos, é negar.

─ Precisamos simular uma armadilha, gritou exaltado um senhor de mais de sessenta anos. Tenho em casa duas netas, que só dormem à vontade, e a janela do quarto delas, fica de frente para a do homem em questão, ponderou ele.

─ Vamos esperar mais um pouco, a precipitação pode nos levar ao erro, falou aquele que parecia ter assumido o comando da discussão. A concordância foi geral, tinham inteira confiança no seu Augusto, um dos mais antigos entre os moradores. Praticamente viu nascer aquela comunidade.

Foram dormir, para não gerar suspeita. A recomendação era para observarem qualquer suspeita sobre o apartamento do quarto andar, fazer filmagens, que seriam examinadas, para posterior tomada de decisão. No quarto dia, algumas filmagens retratavam suspeitas, que poderiam ser levadas à polícia, para averiguação. Um filme comprometedor apareceu, mostrando um homem, possivelmente em pé sobre uma cadeira, praticando o “vício solitário”, às vezes colocando sua genitália além da janela, querendo se mostrar. Ele olhava para o quarto do 3º andar, onde duas garotas dormiam. Prova robusta, gritou alguém. Assim, o voyeur foi levado à delegacia, para explicações. Não mais voltou. Foi um alívio para os moradores da Rua do Sossego.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 21/11/2024
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