ANTEVISÃO

No silêncio da noite calma Rodrigo dava os últimos retoques na aquarela sobre a mesa com tampo de vidro que era o ponto central da varanda semicircular e envidraçada, misto de jardim de inverno, sala de estar e oficina de artesanato. Instalada no prolongamento da construção principal, com visão privilegiada do jardim com a fonte das ninfas aquáticas e das bem cuidadas fruteiras do quintal sempre visitadas pelos pássaros canoros.

- Ué! Ainda em casa?

- Não tenho para onde ir.

- E os amigos?

- Estou sem paciência de ouvir as mesmas brincadeiras e as vantagens amorosas contadas depois que ficam embriagados...

- E a namorada?

- Que namorada, vó?

- Aquela moça que você disse estar apaixonado...

- Eu estava, mas ela não e me descartou assim que soube da minha paixão.

- Ela não sabe a preciosidade de pessoa que perdeu...

- Só a senhora me considera assim.

- Por favor, ajude com essas meadas de lã. Preciso fazer as bolas se não Godofredo vai enlinhar tudo. Ele não perde a oportunidade de dormir na cesta de costuras.

- Acabei de abrir a porta para ele sair. Apareceu uma gatinha branca miando baixinho pelo jardim e ele ficou indócil querendo sair. Acho que a gata está no cio e veio atrás de um macho vistoso e grande como Godô. Sorte dele bem diferente da minha que estou pintando aquarela e segurando meadas de linha nessa edícula enquanto o mundo acontece lá fora

- A gata branca é de dona Neiva. Na outra ninhada foram seis gatinhos filhos de Godofredo. Todos lindos com pelo cinzento, bem mais claro do que o dele por causa da mistura com o branco de Lara, mas com os olhos azuis da mãe. Dona Neiva vendeu todos eles pela internet. Colocou anúncio com as fotografias dizendo que era raça francesa com pedigri. Godofredo apareceu em vermelho, campeão da raça, com nome francês – Godaux Du Sacré Coeur...

- O nome disso ou é estelionato ou falsidade ideológica.

- Dona Neiva diz que é argumento de marketing. Se ela disser que os gatinhos são filhos de dois vira-latas apenas vistosos, ninguém vai querer. Parece que ela cobrou mais de mil reais por cada um deles.

- Ela devia ter dividido contigo, vó. Afinal Godofredo é teu.

- Não meu filho. Estou muito bem sem arranjar encrenca.

- Godô é um cabra de sorte. A mulher vem buscar ele aqui.

- Não se preocupe. Você ainda vai fazer vinte anos, quando menos esperar aparece uma doidivana que apaixonada você virá aqui para ficar contigo e fazer loucuras de amor, assim como Lara faz com Godofredo.

- Godô está com quantos anos?

- Quatro. Fazem quatro anos que uma noite calma como essa eu ouvi o miado do gatinho que um irresponsável qualquer deixou no jardim. O portão estava fechado e essa criatura desalmada jogou o bichinho por cima da grade. Ele estava horrível, sujo de terra, cheio de pulgas e faminto. Como era noite eu dei leite a ele e deixei para cuidar melhor pela manhã. Ele estava tão malcuidado que não reclamou do banho nem por ser escovado. Passado um mês, ninguém diria que era o mesmo gato.

- Os animais reconhecem as pessoas que são benéficas a eles.

- Isso é um fato. Godofredo quase que todo dia me traz um presente das suas andanças. Hoje foi uma lagartixa, daquelas pretas, cascudas que ficam tomando banho de sol em cima do muro. Outro dia foi um beija-flor. Além de caçador ele é muito valente. Qualquer outro gato que se aproxime, ele parte para cima sem medo, faz aquelas poses com as costas curvadas, orelhas murchas, cauda agitada e dizendo aqueles desaforos que parecem resmungos de gente chata. Quando o adversário não sai de fininho, ele parte para a briga...

Trinta anos depois dessa noite Rodrigo relembra a conversa que teve com a sua avó. Não houve alteração na edícula, mas a velha senhora, deitou-se para cochilar depois do almoço e não acordou mais. Godofredo, saiu para uma das suas andanças e não voltou. A antevisão de sua avó de que apareceria uma doidivana em sua vida, se concretizou, não apenas uma vez, mas várias que fizeram ele cometer todas as loucuras de amor que qualquer um faz quando instigado, porque quando a mulher quer, não há homem que resista.

O processo do segundo divórcio está na fase de conclusão. As crianças, até a maioridade, permanecerão com a mãe e virão em dois finais de semana encher de sons a casa que herdara dos avós...

O telefone avisou o compartilhamento da corrida por aplicativo de uma das candidatas ao próximo casamento, seria mais um final de semana repleto de inusitadas loucuras de amor, concretizando a antevisão de sua avó.