RAIMUNDA
-" Não senhora, aqui eu não sou nada! Só um paciente. Nada mais do que um paciente!"
Dona Raimunda, como era por todos conhecida, não sabia o que fazer. Nunca vira uma atitude tão enérgica de alguém negando sua profissão e seu status logo na entrada. O máximo era a afirmação envergonhada. Nem discutiu mais nada, verificou os sinais vitais dele e e o encaminhou para o quarto. Antes que a folgada da enfermeira pedisse foi pegar a medicação dele na farmácia. Quando voltou também informou a nutrição da internação e pediu um almoço a mais, mesmo tendo passado do horário. Tudo isso demorou 15 minutos, e a preguiçosa da enfermeira, que tinha a metade da idade dela, 62 anos, plantada em frente do computador escrevendo todo o serviço que ela não fazia. Apesar de desse ser o conceito que tinha da sua superior, a tratava com enorme deferência e rococós. Em bom português, puxava o saco! Mais fazia de uma forma, que se ela entrasse em uma piscina, morreria afogada. Assim era também com os médicos, principalmente com a coordenadora Janaína e com os outros preceptores. Todos os seus colegas falavam disso pelas suas costas, alguns inclusive na cara dela. Que se danassem todos! Gostava do setor, do trabalho, dos pacientes. Nunca os vira como marginais ou vagabundos, não, eram só doentes. Amaldiçoados por uma doença que os fazia entregar suas vidas em troca de um prazer de momento. Igual ao seu marido, que entregou tudo para a cachaça: os empregos, a dignidade, o amor dos filhos, a saúde. Hoje vive em uma cadeira de rodas, sem as duas pernas amputadas pela diabetes, dependente para quase tudo, sem a misericórdia de nenhum dos filhos, que nunca o vem visitar. Graças a Deus eram outros tempos e ele se aposentou com uma boa pensão. Mas tudo poderia ter sido tão diferente...
Por isso zelava para que fossem cumpridas todas as regras, ao mesmo tempo que era extremamente compreensiva com os pacientes. Desde que a Organização Social assumiu o hospital e ela decidiu ficar, fazia de tudo para se manter no setor. Quem sofria com o reumatismo e a diabetes descompensada era ela, por isso não devia explicações para ninguém. Quem não queria ser jogada de setor em setor como eles faziam com quase todos os funcionários era ela, e faria o que fosse necessário para isso não acontecer.
Quinze minutos tinham-se decorridos desde que deixara o paciente no quarto. Nisto já estava com a medicação e a nutrição já havia entregue o almoço a mais. Foi até onde deixara o paciente e o encontrou de joelhos sobre a cama, orando. Decidiu deixar o abacaxi para o pessoal da tarde, afinal só faltavam dez minutos para a passagem de plantão. Relatou o caso para a enfermeira e para a auxiliar da tarde, pegou suas coisas e foi-se embora.
Hoje era dia do Humberto lhe levar para casa. Dos seus quatro filhos, três eram motoristas de aplicativo e eles se rodiziarem para leva-la e traze-la do serviço acabava sendo o jeito que conseguia conversar com eles. Todos odiavam o pai e não iam na sua casa de jeito nenhum e assim só conseguia ver os netos quando pegava folga de final de semana e contratava uma cuidadora para ficar com ele. Seu caçula era sua maior tristeza. Nitidamente homossexual desde criança, sempre foi motivo de troça dos irmãos e da intransigência e do preconceito do pai. Acabou fugindo de casa aos 16 anos e hoje é cabelereiro em Salvador. Liga para ela às vezes, principalmente para pedir dinheiro. Conhecedora do assunto, imagina onde ele é gasto, mas mesmo assim acaba dando. O pobrezinho sofreu tanto e ela não teve pulso para ajudá-lo. O filho estaciona o carro e ela entra já alegra perguntando dos netos e da nora. Apesar da boa conversa não consegue tirar da cabeça o último paciente. Como alguém pode ter uma graduação e desdenhar dela assim? Depois, pelo tempo que ela levou para ver tudo, ele devia estar uns vinte minutos orando. Se orasse tanto assim não precisaria de ser internado. Deve ter soltado algum parafuso da cabeça dele.
Finalmente chegou em casa, se despediu do filho, que pela milionésima vez falou para que ela largasse "esse escroto filho da puta". Quando entrou o encontrou aos berros com a pobre da cuidadora que não fizera não sei oque direito. Esta lhe passou rapidamente que de novo ele reclamou da comida, que estava sem sal, que não quis tomar banho e que o humor dele estava péssimo como sempre. Dona Raimunda agradeceu, lhe deu o valor da diária e ela saiu mais rápida que um relâmpago. Esperou uns vinte minutos, tentando conversar com o marido como havia sido o seu dia e este respondendo com os piores xingamentos possíveis. Olhou pelas janelas, foi até a cozinha e pôs o prato de comida dele no microondas para esquentar. Pôs o prato de novo na mesa para ele comer, desta vez acrescido de bastante sal, três grandes pedaços de torresmo e regado no óleo de dendê. Abriu uma cerveja, que ficava numa geladeira com chave, e encheu uma caneca enorme para ele. O humor do velho mudou da água para o vinho, tratando-a até de minha rainha. Depois o levou para a varanda onde se podia ver o quintal, seu orgulho, que ela sempre pagava alguém para cuidar. Deixou do lado de uma mesa e nela colocou uma garrafa enorme cheio de Velho Barreiro com cravo e canela, sua bebida preferida, um maço de cigarro de filtro amarelo e um pote de paçoca de rolha:
-"Só você me entende, minha cabritinha velha. Te amo!
-"Também te amo, meu cabra porreta"
Deu uma bituquinha nos lábios dele e foi para dentro assistir a novelinha da tarde:
-"Ninguém nunca vai poder dizer que eu não me esforcei até o fim para fazer ele um homem feliz..."
Este pensamento a divertiu de quase ela dar uma gargalhada sozinha.