Nada é Real
As palavras que escrevi na noite anterior ainda queimavam em minha mente. Foi um conto breve, mas carregado de raiva. Cada linha parecia um golpe no vazio, uma tentativa de dar voz ao descontentamento que corrói minha alma toda vez que observo o mundo ao meu redor.
Postei o texto nas redes sociais. Não era a primeira vez que fazia isso, mas naquela noite, algo em mim ansiava por confronto, por resposta, por qualquer coisa que quebrasse o silêncio ensurdecedor da apatia que me rodeava. Pela manhã, meu pai veio me chamar. Disse que leu o texto e queria conversar. Eu ouvi, mas as palavras dele não me convenceram.
Ele contou sobre sua juventude, sobre como já sentiu a mesma indignação que sinto agora. Disse que agiu de maneira semelhante, que criticou o sistema abertamente, que pagou o preço por isso. Fez questão de ressaltar que o mundo não mudou e que, mesmo que suas palavras fossem verdadeiras, sua abordagem só lhe trouxe isolamento. Concluiu dizendo que às vezes é preciso escolher batalhas, ser estratégico. Mas, para mim, aquilo soava como conformismo.
Porque o que vejo, todo dia, é a mentira mascarada de bondade. Pessoas que fazem o bem, mas com câmeras apontadas para elas, prontas para capturar o ângulo perfeito de sua suposta generosidade. Gente que defende causas e se diz porta-voz de lutas coletivas, mas que, no fundo, quer apenas alimentar o próprio ego, alcançar mais seguidores, ou abrir portas que os levem mais perto do poder que tanto criticam.
No trabalho, é ainda pior. Não importa o que eu faça, as engrenagens do sistema seguem girando, alimentadas pela mesma falsidade que vejo nas ruas e nas redes. Pessoas fingem importar-se com seus colegas, com os clientes, com os resultados, mas por trás dos sorrisos e das palavras gentis, tudo o que existe é interesse. Reconhecimento, promoção, estabilidade.
E então vêm os epítetos. Ingênuo. Inocente. Bobo. Dizem que meu problema é não entender como o mundo funciona. Que não existe espaço para idealismo, para princípios rígidos, para quem quer viver em um pedestal de moralidade. É fácil para eles falar isso, porque já se renderam. Já se curvaram às regras não ditas que exigem que você sorria para o que odeia, que elogie o que despreza, que participe daquilo que abomina.
Mas prefiro ser chamado de ingênuo a me tornar como eles. Prefiro a solidão à cumplicidade em algo que me enoja. Porque, para mim, o que vejo não é apenas um sistema corrupto — é a própria essência da humanidade corrompida. Não acredito que existam atos genuínos, não em larga escala. Toda bondade é contaminada pelo desejo de reconhecimento, por uma contrapartida que justifique o esforço.
O sistema é maior do que todos nós. Ele não é uma criação recente; é a culminação de milênios de comportamento humano. Filosofia e história estão cheias de pensadores que tentaram desvendá-lo ou combatê-lo. Nietzsche falou sobre como a moralidade é frequentemente moldada pelos interesses dos poderosos. Hobbes descreveu a humanidade como inerentemente egoísta, vivendo em um estado de guerra constante, mesmo que velado. Marx viu o sistema como um campo de batalha entre classes, cada uma tentando tirar o máximo proveito do outro. Schopenhauer descreveu a vontade humana como algo cego, irracional e insaciável. Até mesmo Kant, com sua defesa do imperativo categórico, parecia uma voz isolada, pregando uma ética que poucos estavam dispostos a seguir genuinamente.
E eu? Eu vejo tudo isso como um ciclo interminável. Não acredito que possa ser quebrado, porque está enraizado na natureza humana. O sistema não é algo externo a nós. Ele é uma extensão de quem somos, de nossas falhas, de nossos desejos mais baixos.
Quando penso nisso, a impotência é esmagadora. Há dias em que a ideia de continuar nesse mundo parece insuportável. Como viver sabendo que tudo é falso? Que mesmo os gestos mais belos são motivados por algo escuso? Que qualquer tentativa de desafiar isso será esmagada, ridicularizada, esquecida?
Meu pai tenta me consolar. Diz que há maneiras de resistir, de lutar de forma sutil, de criar algo que valha a pena mesmo que ninguém veja. Mas, no fundo, me pergunto: o que isso mudaria? Não há como escapar do sistema, porque ele está em tudo. Está em nós.
Ainda assim, prefiro ser chamado de ingênuo, inocente, imaturo. Prefiro todos esses epítetos à aceitação silenciosa de algo que odeio. Que me desgasta. Que me corrói. Prefiro me agarrar à ilusão de que há algo melhor do que me tornar mais uma engrenagem nesse mecanismo de falsidade e interesse. Talvez isso não me leve a lugar nenhum. Talvez seja tolice. Mas é minha tolice, e é tudo o que me resta.