Rato de mocó

No prédio vivia um moleque que foi apelidado de 'cabelo de poeta'.

Quem deu o apelido foi Zími, pois desde o começo se referia assim ao jovem.

Não sabiam o nome nem a idade exata do cara.

Mila Cox voltou da zona cerealista e guardou a bicicleta na garagem do edifício, que fica no subsolo.

Ela mora no sexto andar, e divide o apartamento com Zími.

Apertou o botão do sexto andar, mas o elevador parou antes no térreo e era o cabelo de poeta quem estava esperando.

Era raro vê-lo, porque ele saía pouco.

Ficou muito branco quando a viu, o sangue sumiu de seu rosto.

Cabelo de poeta ficou segurando a porta e olhando para Mila Cox por alguns segundos.

Ele usava uma camiseta do Ultravox, bem desbotada e com um furo de brasa de baseado.

Ele entrou no elevador e falou: "Morreu o Quinci Jones!"

Ela falou: "Então vou ouvir algum disco em que ele trabalhou quando chegar em casa. Você nunca sai?"

"Às vezes saio pra comprar pão."- respondeu o cabelo de poeta.

O elevador chegou no sexto andar e despediram-se rapidamente. Cabelo de poeta morava alguns andares acima.

Mila Cox saiu do elevador e antes de entrar no apartamento, ouviu um pouco da conversa que rolava entre Zími e Silvano.

Assim que ela abriu a porta, os dois pararam de falar e olharam para ela.

Cox usava uma camiseta azul das Slits que eles ainda não tinham visto, e seu cabelo estava mais curto e avermelhado.

Trazia a enorme mochila com produtos trazidos da zona cerealista.

Silvano levantou, esvaziou os cinzeiros e colocou o lixo para fora.

Ele e Zími haviam interrompido a conversa em meio a piadas que Mila Cox considerou impublicáveis sobre o sujeito que se explodiu em Brasília naquele dia.

Ela falou: "Esse infeliz morreu deixando vários memes prontos. O fato em si não merece menção numa música, mas o contexto doentil da sociedade merece, e isso a gente já faz. Vocês falam alto pra caralho quando bebem, dava pra ouvir do corredor o que falaram dele. Encontrei o cabelo de poeta no elevador. Estava cheiradaço, mais bicudo que o Pato Donald."

Zími voltou a falar para dizer a ela que estava com letras quase prontas para músicas novas.

Ele disse: "O atraso nas novas composições, causado pelo show em Taubaté, acabou nos ajudando nisso, pois em poucos dias aconteceram coisas ainda mais bizarras pra serem explorados, tanto na minha eterna luta em busca de sossego, como também no resto do mundo."

A iminência do colapso social e ambiental brasileiro e mundial havia chegado a tal ponto que não havia como faltar assunto.

Por isso, Zími sabia que era hora de fazer músicas novas, gravá-las e lançá-las.

Mas antes disso Mila Cox já o pressionava para que marcassem algum show, já que estavam sem tocar ao vivo havia algumas semanas.

Mas era como se o mundo estivesse fazendo de propósito, dando toneladas de temas para serem abordados em canções ácidas e críticas, mas não panfletárias.

Pensaram em como Mark E. Smith era um mestre nisso.

E Zími nem sabia que em tão pouco tempo a coisa toda poderia ficar ainda mais surreal e o momento seguinte ainda mais propício para o lançamento de músicas novas.

Se Zími e Mila Cox levassem em conta apenas os motivos mais escandalosamente patéticos que a humanidade estava produzindo naquele momento, teriam material para lançar músicas até morrerem, sem o risco de soarem repetitivos.

Mas Zími concordou com o show naquele momento porque foram convidados por pessoas que o agradavam.

Na ocasião, estavam às vésperas do segundo turno para as eleições municipais, e o efeito que a votação causava na sociedade transcendia o que se deve entender por fuleiragem.

Entre as muitas coisas que lhes causam tristeza, encontram um rico manancial para ser explorado artisticamente.

Para eles, bastava olhar pela janela do apartamento, andar na rua ou ler notícias. Isso geralmente bastava para que brotassem os temas abordados pela banda Crop Circles, formada por Zími e Mila Cox.

Zími precisava de estímulo naquele momento para voltar a tocar ao vivo, depois desse período de ausência dos palcos que tanto incomodava Mila Cox.

Quando souberam da vinda ao Brasil da banda Sleaford Mods, que também é uma dupla, Zími e Mila Cox assistiram novamente algumas apresentações deles ao vivo, e sentiram novamente que, de uma certa forma, estavam no 'caminho certo'.

Era como se alguém mais no mundo, mesmo morando longe e sem nunca ter ouvido falar deles, também fosse capaz de compreendê-los de verdade, tamanha é a originalidade que apresentam, num tempo em que aparentemente a maioria das fórmulas musicais possíveis já foram tentadas e recicladas.

Mila Cox era o estímulo que Zími tinha para se animar para sair e tocar.

Ela sempre queria fazer shows, e era ela quem os agendava.

Então, enquanto esperavam pelo show do Sleaford Mods, fizeram esse show que encerrou o hiato nas apresentações.

Deixaram as novas composições para serem feitas depois desse dia.

De qualquer maneira teriam que esperar o resultado da eleição americana para que tivessem ainda mais assunto para as músicas novas.

Dias depois, com a divulgação do resultado, souberam mais do que nunca que a aventura humana na Terra estava realmente em derrocada, poucos dias antes da bizarrice ocorrida em Brasília.

Então fizeram o show, que foi em Taubaté, onde eles já tinham alguns amigos, que conheceram em apresentações anteriores na cidade.

Era a festa de aniversário de Magrão, baterista dos Impunes, uma banda local.

Magrão já era conhecido de Mila Cox, Zími e Silvano por ser fã dos Crop Circles, e por ter tocado em diversas bandas, mas seria a primeira vez que os três poderiam ver e ouvir sua banda atual.

Era também o dia do segundo turno das eleições municipais em várias cidades do país, incluindo São Paulo, de onde são os Crop Circles, e Taubaté, onde a festa foi realizada.

Nesse dia aconteceram quatro shows na espaçosa casa de Magrão.

Tudo muito bem organizado, e havia ali entre sessenta e oitenta pessoas, um público do tamanho que os Crop Circles e Silvano estavam acostumados a se apresentar.

Silvano, um uruguaio multiinstrumentista que fala português quase sem sotaque, era também vizinho de porta de Cox e Zími num prédio antigo no bairro da Liberdade.

Ele tocou primeiro, abrindo o evento, Depois tocaram os Crop Circles, com os Impunes na sequência, e para encerrar,uma banda chamada Tótem.

As pessoas envolvidas, entre artistas e público, boicotaram a eleição em troca de um domingo mais digno.

Essas pessoas deixariam de comparecer à votação de qualquer maneira, com ou sem os shows, pois cada uma delas sempre prezou demais pelo próprio tempo.

Não sairiam num domingo de chuva apenas para escolher um político escroto que continuaria a arruinar a vida do povo pelos próprios quatro anos.

Depois souberam que o índice de abstenção havia sido alto, o que lhes dava certa esperança de que algumas pessoas estão abrindo os olhos.

Zími precisava de antecedência para se preparar física e mentalmente.

Ele gostava de tocar em outras cidades, mas não tão incessantemente.É preciso estar com uma certa saudade do palco.

Zími é o baterista e também canta metade das músicas.

Requer um tipo extraordinário de concentração para fazer essas duas coisas simultaneamente. Também requer fôlego.

Zími sempre lembra como isso é muito mais difícil, por exemplo, do que tocar guitarra e cantar ao mesmo tempo.

Os Crop Circles não tinham um guitarrista. Eram uma dupla, e era suficiente.

Zími diz ser necessário algum tempo entre esses rolês para que cada um seja especial por algum motivo.

É algo que vai além da recuperação física, pois além de tudo, ele não era exatamente um atleta.

Embora aparentasse ter boa forma física, porque era alto e magro, ele fumava muito e bebia de verdade, sobretudo depois dos shows.

Eles participam de eventos independentes, em que o acúmulo de funções ia muito além de tocar e cantar ao mesmo tempo, carregar peso e dormir pouco.

Os três faziam piadas sobre a ideia de um dia terem roadies para carregar equipamento, afinar instrumentos e outras coisas que eles mesmos gostavam de fazer por conta própria.

Para Zími, era medonho admitir que para um cara de meia idade, as motivações são outras em relação a alguém com vinte e um anos, como é o caso de Mila Cox.

Ela, que toca contrabaixo, sintetizador e canta as músicas que não são cantadas por Zími, tem também a missão técnica de suprir a falta de um guitarrista nos shows..

É ela também quem mais defende o formato de dupla e nunca quis um guitarrista na banda.

Há guitarras gravadas nas músicas dos Crop Circles em suas versões de estúdio.

São gravadas por Mila Cox no estúdio que eles tem em casa, mas nunca nos shows. Ao vivo, ela se vira com os efeitos do sintetizador para suprir a falta da guitarra.

Com todo o vigor da juventude, ela ainda busca por aventuras que podem desencadear certos perrengues.

Já Zími, aos quarenta e sete anos, não gosta de gastar energia e tempo com certas situações infrutíferas, que antes enfrentava com tranquilidade, quando tinha a idade atual de Cox.

Zími não quer nunca ser o chato do rolê, o único a ficar reclamando.

Ele sabe que Mila Cox e Silvano, que também é vizinho de porta de Zími e Mila Cox no prédio em que vivem, acordam com todo o entusiasmo possível em dias de show.

Nesses dias parecem acordar loucamente entregues a paixão que tem por shows pequenos, independentes e socialmente orgânicos.

A Kombi de Silvano, usada para transportá-los com o equipamento em dias de show, nunca parou por pneu furado, por exemplo, mas Zími sabia que outros tipos de chateação seriam quase inevitáveis.

Mila Cox é quem agenda os shows, e Silvano sempre encaixa seu show no mesmo dia dos Crop Circles, pois geralmente tocam quando há outras bandas e artistas para se apresentar no mesmo evento.

Naquele dia, Zími conheceu Kêta, que era a baixista da banda Tótem.

Ela usava um baixo Fender Jazz Bass azul que já foi de Mila Cox, antes de Cox trocá-lo por um Gibson.

Ela era do mesmo tamanho que Mila Cox, quase baixinha, várias tatuagens, com pele muito branca, cabelo muito preto até os ombros e com a franja da Crhissie Hynde.

Silvano logo mencionou que nos anos setenta já havia uma banda uruguaia chamada Tótem.

Depois constataram que eram bandas completamente diferentes.

Os uruguaios tocavam rock progressivo cantado em espanhol, e a banda que Kèta estava tocando era de um hard core comum, cantado em inglês, carbono do Black Flag.

Zími agora mantinha o que chamava de 'admiração estética e comportamental' por Kêta, que é amiga de Mila Cox .

Kèta já sabia que Zími era um baterista minimalista, que tocava de pé e cantava metade das músicas.

Zími havia ouvido falar de Kêta por anos, mas foi preciso vê-la de perto para entender o motivo de tantas menções favoráveis por parte de Mila Cox.

Elas eram colegas no colégio, e depois Kèta foi para a faculdade. Estudou Ciências Sociais na Federal, em Guarulhos.

Kêta finalizou o curso no ano anterior e agora tinha mais tempo para se dedicar à música.

Ela morava perto da casa que Mila Cox vivia na Penha, e continuou morando ali depois que Cox se mudou para dividir um apartamento com Zími no bairro da Liberdade para se dedicar à banda e sair da casa da mãe e da avó.

Kêta tinha uma edícula no fundo da casa dos pais e não via motivos para sair.

Ela conseguia facilmente se manter bem nas circunstâncias em que vivia porque não alimentava atritos com os pais.

Dedicava-se a vários tipos de arte, mas ainda não de forma tão consistente como os Crop Circles.

Ela não era a baixista original da banda em que tocava.

Aceitou substituir o ex-baixista para ganhar experiência tocando ao vivo, para depois montar sua própria banda.

Kêta dizia que precisava ser completamente independente da opinião alheia em tudo que fazia, mesmo que houvesse também o desejo de ser reconhecida.

Esses eram alguns pontos de intersecção ideológica entre Kêta, Mila Cox e Zími.

Enquanto isso, Mila Cox foi para a música com tudo. Montou os Crop Circles com Zími e foram dividir o apartamento.

Ambos trabalhavam como copywriters para pagarem as contas.

Na mídia se falava da luta contra a escala de trabalho de seis por um.

Isso os fazia pensar no quanto sofria a família tradicional sustentada por um trabalhador nessa escala.

Aquele que escraviza defende a família tradicional, e a destrói ao sugar até o tutano do arrimo dessa instituição tão frágil e ultrapassada.

O que Mila Cox, Zími e Silvano ganhavam com música era suficiente apenas para que não tivessem que pagar para tocar.

Mas lá estavam eles no apartamento e Mila Cox lembrou que a diferença de idade entre Zími e Kêta é de vinte e quatro anos.

Ela ridicularizava o interesse de Zími por sua amiga sempre que podia.

Zími tinha quarenta e seis anos e Keta tinha vinte e dois.

Quando Mila Cox usou a palavra 'ridículo' ao se referir ao interesse de Zími por Kêta, ele falou: "O amor está na apreciação, e não na posse! Além disso, tem prazo de validade." - dizia Zími toda vez que ouvia uma resposta dura de Cox para as perguntas que ele fazia sobre Kêta.

Houve uma pausa e ele continuou:

"Ela é muito 'cool'. Muito mesmo, quase 'overcool', Mas eu não sei como ela faz pra aguentar a maioria das pessoas. Ela vai sair em carreira solo, ou montar uma banda em que ela mande. E ela é ligeira, não vai chamar amigos pra montar a banda. Vai chamar músicos que depois do show vão beber separados dela. Pode parecer uma postura mala, mas acho que se o intuito é a arte pela arte, então isso é o melhor a ser feito. Sei que no caso da nossa banda isso não é necessário, e talvez isso tenha sido e ainda seja uma premissa pra banda existir."

Mila Cox: "Mas você ficar atrás de uma menina que pode ser sua filha pode queimar o filme."

Zími: " Você se exalta ao tentar ridicularizar minha admiração por ela. Você sabe que não é um caso qualquer de um cara velho com uma mulher mais nova. Logicamente, esse cenário, se imaginado de uma maneira genérica, pode imediatamente projetar no imaginário uma cena ridícula. Por exemplo: Um sujeito de setenta e cinco anos, barrigudo, de bermuda, sapatênis, meia até o meio da canela, camisa polo e cabelo pintado de preto, andando com uma garota de dezenove anos. Mas eu sou um rocker, aparento menos idade do que tenho. E ela não suporta os moleques da idade dela. Eu também não aguento, e já não aguentava nem mesmo quando tinha essa idade. Além do mais, ela é artista, e tem a mente aberta pra certas coisas que perturbam essa sociedade podre e obtusa."

Mila Cox: "Eu sou calma em relação a isso, porque você nem ao menos falou com ela sobre o seu interesse. Você gosta de putaria mais fácil, enquanto bebe depois de algum show nosso, É bem mais fácil."

Zími: "Pois é, eu não estou nada desesperado quanto a isso. O que me chamou a atenção nela foi o fato dela dizer que não gosta de bandas que usam sandálias. É um sentimento com o qual eu compartilho. Algumas pessoas tem medo de fazer esse tipo de observação pra não parecerem preconceituosas. No dia que a conheci, teve uma banda dessas que tocou depois da gente."

Mila Cox: "Sim, era banda do Magrão. A banda é bem ruim. Mas ele já tocou em bandas melhores antes. Sem querer passar pano pra ele, sei que ele aceitou tocar porque provavelmente aqueles caras nunca arrumariam outro baterista, e o Magrão estava sem banda pra tocar no dia do aniversário dele.. Mas realmente beirava o constrangedor. Ter tocado depois de nós deve ter atrapalhado o show deles. Mas as músicas eram ruins, de qualquer forma. As composições eram ruins, e não só a execução delas naquele dia. Espero que reavaliem a trajetória depois daquela apresentação patética. Mas voltando ao outro assunto, pelo menos você é solteiro. Não constituiu uma família convencional. Nunca vi uma família convencional que fosse funcional."

Zími: "Eu já teria filhos grandes, se vivesse nos moldes da família tradicional. Não consigo nem imaginar. Estaria arruinado, pagando pensão, material escolar, não ia tocar. Seria uma merda, mas isso é no meu caso. Eu espero que cada um faça o que quiser com suas vidas, desde que não atrapalhe os outros. É preciso agir entre a cautela e o sonho. Não ter filhos é algo seguro, e tê-los por inércia é gravíssimo. Acontece muito, por um capricho cultural e social."

Mila Cox: "Eu também não consigo imaginar ter filhos, nem agora e nem depois. Geralmente não preciso falar sobre isso, mas quando acontece, geralmente me falam que eu vou querer quando ficar mais velha. Eu vou querer tocar e viajar pra tocar. Logo não terei filhos. Há um tabu horroroso relacionado a isso.Um tabu bem machista e reacionário. O mais surpreendente é ver mulheres viverem sob esses paradigmas sem questioná-los. Quando eu ainda era pequena e vi foto da Suzi Quatro com o contrabaixo e roupa de couro, já fiquei intrigada, e nunca mais deixei de questionar. Eu soube imediatamente que preferia aquilo do que o padrão vigente. É desse período a bronca que eu também sempre tive com esses caras que tocam de sandálias. E eu nem conhecia a Kêta ainda."

Zími: "Esse tabu que você citou é medonho mesmo, assim como também é medonho você achar que minha diferença de idade com a sua amiga é algum empecilho, ou algo feio, sendo que ela é maior de idade há muito tempo, apesar de ainda ser jovem. E se formos levar em conta a idade mental dela, aí nossa diferença de idade se reduz bastante. O pensamento brasileiro sempre foi opressor. Mas você é jovem, e acerta na maioria das vezes, e terá tempo de reavaliar o que for necessário."

Mila Cox: "Pode apostar que esse questionamento é diário. É lógico que eu posso mudar de opinião, se for pra melhor. Eu não sei como você era quando tinha a minha idade. Tive acesso a poucos registros de fotos e nenhuma gravação de áudio. Fora isso, só ouvi aquelas lendas que seus amigos contam sobre a sua juventude. Foi expulso de uma banda que você mesmo montou, deu prejuízo total num puma preto que foi o único carro que teve na vida, fez faculdade e depois foi parar nos mocós mais imundos do centro da cidade, e outras coisas que não lembro agora. Eu tenho certeza que a gente só poderia tocar juntos mesmo e dividir apartamento agora que você tem essa idade."

Zími: "Na época não existia internet, e ninguém andava com câmeras fotográficas, a menos que fossem fotógrafos.Os meus registros são raros mesmo, e muitos se perderam. Pode existir com pessoas que não vejo há muito tempo e perdi o contato. Principalmente pessoas que deram guinadas equivocadas na vida, impulsionadas pelo status quo. Alguns achavam loucura investir pra ter uma banda, e hoje eles gastam dinheiro com fraldas e material escolar. Vivem no modo sobrevivência e não são nada perigosos pro sistema. E eu lembro de alguns que juravam que nunca se renderiam ao sistema. Doam seu tempo e energia pra atividades sem qualquer propósito existencial mais profundo. São sempre empregos de merda. A prova disso é que não podem largá-los. Fiz a faculdade antes de ter internet em casa. Sou jornalista formado. Hoje qualquer retardado escreve um monte de merdas na internet e se diz jornalista. Você já nasceu com internet, nem pode imaginar como era a vida antes disso. E eu ainda amo mídias físicas, amplificadores valvulados, rádio e jornal impresso. E naquela época já detestava essas bandas de sandálias. Lamentavelmente vivi no período de ascenção dessa gente. Isso consolidou a ausência do rock na mídia tradicional e no gosto dos brasileiros que cresceram nesse período. Mas agora passou tempo suficiente pra que isso tenha se tornado algo positivo, porque se por um lado a internet dá voz aos piores idiotas, também dá essa possibilidade de pelo menos deixar material autoral registrado, independente da popularidade. Nós não dependemos financeiramente disso, e ao mesmo tempo não precisamos pagar pra tocar. Não temos qualquer ilusão quanto a festivais corporativos, porque a gente mesmo organiza nossos shows e não sofremos com cerveja quente em copo de plástico. Quanto ao meu passado, devo dizer que minha juventude é repleta de fracassos retumbantes e sucessos esplendorosos. Esse equilíbrio permitiu que eu chegasse vivo ao dia de hoje. O caráter de um homem é o seu destino. Se há uma coisa importante que eu aprendi, foi a prezar pelo meu tempo. Quem desperdiça uma hora do dia à toa, não sabe o valor da vida. Se dependesse da vontade dos meus pais, eu seria advogado, ou servidor público, encostado até morrer num cabide de emprego. Os nomes que eles davam pra isso eram 'segurança' e 'estabilidade'."

Então Mila Cox pensou na pressão que sofria por parte de sua mãe e sua avó quando morava na casa delas.

Foi para a janela olhar de cima a Rua da Glória numa noite fria.

A pressão era para que Cox fizesse como fez Kèta, que entrou na faculdade e deixou a música para as horas vagas até que se formasse.

Ela sempre quis fazer o contrário. Estabelecer-se no meio artístico antes, mesmo não pagando as contas com dinheiro ganho com música, e só depois pensar na vida acadêmica. Ou mesmo desencanar de fazer faculdade e estudar por conta própria.

Virou-se de volta para o apartamento, e olhou Zími brincando com um urso de pelúcia que tocava tambor.

Um sujeito de quase cinquenta anos, que havia feito faculdade.

Fernando Barreto de Souza
Enviado por Fernando Barreto de Souza em 18/11/2024
Código do texto: T8199976
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.