O ouvido
Regiane olhava da sacada do prédio os vários carros estacionados. É dos que estão na casa de seus parentes. Dos que tem parentes...
Lembrou dos natais de sua infância. Do cheiro de rabanada que vinha da cozinha todas as manhãs já do dia 24 , feitos por sua avó vinda do interior para passar a data com eles. A mãe fazia o Peru da ceia, a tia sempre trazia o pavê. E o pai, bom o pai, era o tio do pavê, daquela famosa piada: “É pavê ou é pá comê” que ele fazia questão de repetir todo ano. Seus primos também vinham, tinham mais ou menos a mesma idade. Agora, o seu primo passou em um concurso público e foi morar no Amazonas e a prima foi tentar a vida no Canadá.
Seus pais faleceram em um acidente de carro há três anos. Nessa época ela estava casada. Pensou que poderia contar com o apoio do marido, mas já estavam em crise. Ela descobriu não poder ter filho, que era o que ele mais queria. A sogra se intrometia em tudo e as brigas eram constantes. Ele também já não era tão carinhoso como antes e a compreensão havia acabado. O divórcio saiu ano passado.
Das ceias de Natal com o marido tem lembranças boas e ruins. Sempre passaram na casa da sogra. O irmão era simpático e a tratava bem. A cunhada só falava sobre ela, o que tinha comprado, as viagens que tinha feito e seus próprios problemas. Sempre que alguém vinha com alguma história particular interrompia para falar dela. Os sobrinhos eram um amor. Regiane passava mais tempo brincando com as crianças que conversando com os adultos.
Virou a cabeça e olhou para o apartamento vazio. Nem se animou a fazer ceia. Comprou um prato pronto do mercado que iria esquentar. Quem vai me abraçar quando der meia noite? Suas duas amigas foram visitar parentes no interior. Pai, eu daria tudo para ouvir sua piada do pavê de novo hoje. E as suas reclamações também, mãe. Preciso falar com alguém, mas quem? Não quero estragar o Natal dos outros com lamentações.
Cintia pegava a menor no colo enquanto o maiorzinho se agarrava em sua perna. O marido:
— Quem é que sai para fazer um trabalho voluntário em plena véspera de Natal? E nós?
— Amor, eu vou estar no almoço e depois teremos a semana toda para ficar junto. Quase ninguém se oferece para trabalhar hoje...
— Por que será, né?
— Já te falei, é o dia mais movimentado. E você sabe muito bem porque faço isso.
— É, eu sei... Vai lá então...
— Tchau. Te amo.
— Eu também.
Dá um beijo nos dois filhos.
— A mamãe já volta.
Sai.
Regiane pega o telefone. Precisa esperar, muita gente teve a mesma ideia que ela. Cintia atende. Regiane começa a contar toda a sua história, sentimentos e angústias para aquela desconhecida. Sente a pressão no peito diminuir e a angústia vai embora. Ao desligar o telefone enxuga as lágrimas e vai esquentar a sua comida. A tristeza permanece mas já não é desesperadora.
Cintia lembra daquele dia, aos dezessete anos, um pouco antes das férias de dezembro ela chorando sozinha no banheiro da escola. As outras meninas tinham vasculhado sua mochila e ao verem uma calcinha extra começaram a passar pela sala e fazer piada. Todo o dia essa história. Era chamada de pobre e tonta. Ouvia piadas pelos corredores. Era bolsista, tímida, usava óculos e roupas simples. Não queria falar com os pais para não chateá-los. Ela não poderia sair, precisava daquela bolsa. Ao sair do banheiro viu um cartaz do CVV(*). Ligou assim que chegou em casa. Se sentiu ouvida e acolhida. Depois daquele dia decidiu que também queria fazer a diferença na vida das pessoas. Dez anos depois resolveu ser voluntária do CVV.
Ela atende mais alguns casos, inclusive mais complexos que aquele. Ao chegar em casa encontra o marido preparando o café e os filhos ainda dormindo. Era hora de cuidar deles e o principal, ouvi-los.
(*) CVV – Centro de Valorização a Vida. É um serviço voluntário gratuito de apoio emocional e prevenção ao suicídio para todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo e anonimato.