DIADEMA
Observava do saguão de espera do hospital no horizonte a cidade. Não parecia ser diferente de qualquer outra cidade de médio porte. Alguns prédios, alguns até modernos, muitas edificações de dois andares, que provavelmente serviriam como comércio ou escritórios e algumas casas:
-"Como deve ser morar na rua em Diadema?"
O pensamento lhe veio como uma coisa natural. Sentia-se uma casca vazia; vazia de sentimentos, de medos, de esperanças, de tudo enfim. A auxiliar de enfermagem que o acompanhava não parava de falar um minuto, em outros tempos aquilo lhe irritaria à loucura, mas naquele momento, agradecia. Silêncio significava ficar com os próprios pensamentos, e estes eram dolorosos demais. Nos últimos dois dias ficara vendo um filme que assistira com seus dois filhos, última lembrança boa que possuía como pai, para não ter que encarar o silêncio.
A imagem de sua filha sendo levada para o hospital com sangramento por causa do esforço que fez para lhe espancar quando ele chegou em casa depois de cinco dias usando crack e cachaça na favela repetia-se sem cessar na sua cabeça. Não sabia se ela tinha perdido a criança ou não. Mesmo com tamanha gravidade esta era só a cereja do bolo de obscenidades que havia feito nestes últimos sete meses: Usou com o seu filho adolescente em casa, ficando transformado, já havia buscado ele na escola neste estado, usara na casa da sua mãe com seus sobrinhos lá, se prostituíra, recolhera reciclável como um morador de rua onde sua mãe poderia ser reconhecida, ficou conhecido no ponto de táxi do supermercado que sua mãe frequentava pelas corridas até a boca. A lista era interminável. Nada havia sobrado de sagrado, de honra, de nada. Se sua filha perdesse aquela criança nunca haveria perdão. Na verdade já não havia. Sua mulher com certeza ia deixar passar o tempo dos papéis da perícia para o serviço, o que configuraria abandono de emprego e demissão sumária. Teria uma medida protetiva quando ele retornasse para casa e sua mãe não o aceitaria de volta.
Pensar que há três meses atrás se reconciliaram dentro de um culto da Congregação onde foram buscar a Palavra para ver se tentavam se entender uma última vez. Assim falou o pregador:
-"Todas as promessas que eu fiz na vida de vocês ainda estão de pé. Eu não sou homem para mudar de ideia ou de querer. Confiem em mim e vocês verão o milagre que eu farei nas suas vidas!"
Não era mais ingênuo de duvidar de Deus. Só não acreditava mais em si mesmo. Nem as piores dores, nem as maiores alegrias foram capazes de fazer com que ele resistisse a tentação de "dar só uma". Só um milagre! Mas até isso Deus já fizera, e mais de uma vez, e ele não conseguira parar. Não, agora era hora de cumprir seu destino, viver de humilhação em humilhação até a morte anônima em algum buraco esquecido.
Enquanto estava nesses pensamentos três homens em trajes sociais armaram os suportes para instrumentos atrás deles. Só os percebeu quando começaram a afina-los. Um violoncelo, um violino e um saxofone. Começaram a tocar do nada um hino que ele conhecia. Uma presença o tomou e ele escutou como uma voz em seu ouvido:
-"Eu não te abandonei!"
No mesmo instante a moça da recepção os avisou que poderiam subir. Ele atônito pegou sua mala e seguiu a auxiliar de enfermagem até o elevador, onde foram até o segundo andar. Lá entraram por uma porta de ferro. A auxiliar que o levou cumprimentou a colega, se despediu dele desejando boa sorte. Esta então se apresentou a ele e foi ler a sua ficha:
-"Ah, vejo aqui que você é nosso colega, um Enfermeiro...
-"Não, Por favor senhora. Aqui eu não sou nada! Só um paciente. Nada mais do que um paciente!"