O Velho
O velho começou a me abandonar aos três anos.
Eu sabia, mas não sabia muito bem.
A digestão foi longa, por anos, e só fui me dar conta lá pelos quatorze, quando aquilo caiu como uma azia que não passava.
Ele saiu, de mala e cuia.
No começo, aparecia uma vez por mês.
Lembro até hoje do dia em que foi me buscar pra irmos no seu bar preferido, vestia uma camisa de super herói.
Cresci o olho, afinal, era uma criança.
Ele tirou do corpo e me deu, foi em casa colocar outra e prometeu que voltaria, não voltou.
Aliás, voltou depois de uns meses,
Meses que viraram um ano.
Ano que viraram anos.
De repente, anos viraram telefonemas bêbados num final de domingo.
Telefonemas que viraram cobranças, uma inversão de culpas, como se eu fosse o vilão da história.
Aos 18, me ligou pra falar que eu deveria ser polícia, como meu avô que eu nem conhecia.
Aos 24, já formado, apareceu sem saber sequer quantos anos eu tinha (“está com 21? Ainda dá pra ser polícia igual seu primo!”).
Eram conversas que pareciam infinitas pra mim. Um infinito sem assunto, que já não valia mais a pena argumentar ou discordar.
Conversas eternas de elevador, na verdade.
Nessa época eu já não sentia nada, parei de sentir ali pelos 16, quando as várias outras preocupações da vida já haviam me consumido.
Aos 24 o Velho já havia morrido em vida. Que sensação horrível é o vazio.
Porém, mesmo morto em vida, os reflexos de toda uma relação de negligência estavam presentes no meu DNA.
Eu não sabia. Sofri, sofreram todos a minha volta.
Castelos erguidos com muito custo ruíram de uma só vez, muito por conta da sombra do Velho que se colocava no fundo do meu subconsciente.
Ah, me lembrei aqui, aos 25 descobri que tinha uma irmã mais velha… que loucura.
Mas isso até então era irrelevante já que o Velho havia morrido em vida pra mim.
Mas a vida é uma montanha russa. Depois de uns nove anos sumido, o Velho me aparece batendo na porta, fisicamente acabado, mais do que eu tenho lembrança.
Chorando, pedindo perdão, tremendo na frente do neto de seis anos que ele nem sabia que tinha.
A criança, olhando desconfiada, nem se dá conta que estava de frente a uma figura que, nos efeitos borboletas da vida, poderia ter sido indiretamente responsável por vários traumas e dificuldades na nossa relação.
E eu? Não tenho nada o que perdoar. Também não me interessa a briga, o desdém. Sinceramente não tenho tempo e nem disposição pra gastar com isso.
Hoje já não sou mais aquele de 24, 25…
Mas, ao mesmo tempo, me preocupa o fato de não sentir nem mais uma gotinha de raiva, ódio ou indignação pelo Velho.
Parece que algo aqui dentro desligou sobre essa situação.
Não sei dizer bem como me sinto. Não dá pra recuperar o tempo perdido, mas no mínimo me diverte essa nova relação, congelada há anos.
Me diverte os bons dias do Velho no WhatsApp, as palavras que ele troca de nervoso, como se fosse uma criança que fez algo errado se explicando para o diretor da escola.
É bom ver que ele está tentando, mas não me me permito ter expectativas, já não tenho mais idade pra isso, como disse aí pra cima.
Mas, pelo menos, durmo melhor ao saber que meu perdão (totalmente extemporâneo e obsoleto), tirou um fardo das costas de um homem que errou demais.
Espero que ele, então, também durma melhor a noite.