Capítulo I - UM BANCO DE PRAÇA EM RECIFE
Primeiro a testa e, em seguida, o rosto inteiro, foi golpeada de cheio pelos chamejantes raios do sol do novo dia que se levantava. Luiz já não dormia pesadamente, agora ele apenas tentava, sem querer abrir inteiramente os olhos, escapar a esse incômodo escaldante virando-se de bruços no banco de praça onde estava deitado, com as pernas dependuradas, porque a sua cama improvisada era bem menor que o conveniente. Mas os raios do sol que antes atingiram a sua cara, agora atingiam a sua nuca, causando-lhe não menos achaque. Então Luiz abrindo bem os olhos, sem dúvida a contragosto e até irritado, procurou apanhar um pedaço de papelão que estava sob o seu banco e com ele cobrir a cara, pretendendo voltar a dormir. O pedaço de papelão livrou-o, é verdade, de ter a cabeça diretamente atingida pelo sol, mas não o livrou de se sentir como em uma estufa, o que em pouco tempo o fez atirar fora o papelão e sentar-se.
Olhando em volta viu que os vendedores ambulantes já tinham começado os seus comércios do dia e que a cada momento mais pessoas transitavam ali por perto, umas fazendo exercícios físicos, enquanto outras pareciam apressar o passo para o trabalho. Os lábios ele os tinha ressecados, e percebendo-os assim, passou sobre eles a língua, procurando umidificá-los. Luiz tinha sede. Levantou-se então e rumou para o banheiro público que havia sido construído recentemente, ali mesmo na Praça do Derby, pela prefeitura. Em lá chegando, abriu completamente a torneira de uma das pias que havia aí e a água jorrou impetuosamente; ele lavou o rosto, encheu a boca de água, bochechou, cuspiu, e, por último, enchendo mais uma vez a boca de água, a engoliu; isso se repetiu até que enfim ele se sentiu dessedentado; depois saiu do banheiro onde matara a sede e voltou para o seu banco, onde se deixou ficar sentado, a observar tudo a sua volta. Ficou assim, contemplativo, quase imóvel, por cerca de três horas, ao cabo das quais sentiu imensa fome.
À boca subiu-lhe um gosto amargo. Era esse o sabor da fome, de uma fome de dias, de meses, de anos, que se não era fome de anos, meses e dias de calendário, de voltas da terra em torno de si mesma e em torno do sol, era tal em sentimento, aqui e agora. Na boca Luiz tinha o amargor e no estômago um vazio, mas não um vazio filosófico, um vazio que se confunde com o nada absoluto, senão um vazio dolorido, pulsante, inquieto, estrangulando as suas tripas. Luiz tinha fome.
Enquanto estivera dormindo, a fome e a sede não existiam para ele, mas veio o sol de um novo dia e arrancou-o ao sono e ao sonho. Luiz percebera então, quando o estômago reclamava violentamente a suspensão imediata do jejum, que sonhara. Metido em si mesmo ele sabia que tinha sonhado com algo, todavia não chegava a distinguir exatamente com o quê. E tanto mais força ele fazia para descobrir o conteúdo do sonho da noite anterior, ainda mais a fome queimava em labaredas no seu ventre. Lembrava apenas que tinha sido um sonho bom; quem sabe tivesse sido um sonho em que tinha casa própria e comida, comida regularmente... Mas sonhos são sonhos, e agora Luiz ficara sem a ilusão noturna e só com a realidade, a realidade que se afirma pela dor.
Levantou-se do seu banco e se dirigiu às barracas de comida com a esperança de conseguir qualquer coisa que, se não chegasse para matar a sua grande fome, ao menos servisse para diminuí-la. Mas ouvia sempre: “Comecei as vendas agora, volta aqui no final do dia”, ou “Eita, moço, só tenho o dinheiro do meu lanche”.
Pedia comida de verdade e davam-lhe promessas e desculpas. Revoltava-se no seu interior, mas não amaldiçoava ninguém; no fundo ele até pensava que, de fato, ninguém tinha nada que ver com a sua miséria. E seguia caminho. Era quase meio-dia quando Luiz se apercebeu de que mais as suas pernas do que a sua cabeça o tinham levado à Praça Maciel Pinheiro, no centro do Recife. Encontrou-se então em companhia de outros tantos indivíduos de igual sorte que a sua; maltrapilhos, sujos, fétidos, desabrigados, entregues aos rigores dos dias quentes, das noites frias e das chuvas, bem como das caras feias e dos enxotamentos. Sentou-se ao pé de um banco ocupado por uns três outros mendigos e se deixou ficar aí, a esperar ver o que viria a seguir. Um dos rapazes que estava sentado no banco, visivelmente drogado, estendeu-lhe a mão com uma garrafinha com cola de sapateiro em seu interior.
--- Oia, mano, quer não? Disse a Luiz, enquanto mal podia sustentar o próprio corpo sem parecer que fosse cair a qualquer momento.
Luiz fitou o rosto magro e sujo do seu companheiro, desceu a vista para a garrafinha de cola, e sem esboçar reação alguma, virou o rosto para outra direção. Mais uma vez o cheira-cola fez oferecimento a Luiz do seu entorpecente, mas Luiz não fez caso dele. À terceira oferta Luiz acedeu; ele aspirou com força o cheiro da cola e quase desmaiou, mas agora não se dava mais conta de que tinha fome; ficara apenas com a sensação de estar boiando a deriva, no mar aberto, sob o clarão de um dia de verão intenso. Levantou-se e se pôs novamente a andar. Luiz atravessou a Ponte da Boa Vista e foi caminhando lentamente à margem do Rio Capibaribe, de quando em quando parando como que para apreciar a vista. À altura da Ponte Santa Isabel Luiz procurou se sentar sobre a mureta do rio, e ficou aí longos minutos aspirando a maresia, arejando o cérebro entorpecido, vendo o brilho do dia se espraiar nas águas turvas do rio das capivaras.
Já Luiz se tinha recuperado plenamente do lenitivo que a cola lhe tinha sido contra a fome severa e agora a sentia ainda mais violenta, invencível. Atirou-se ao rio. As águas calmas do Capibaribe receberam o seu corpo famélico sem recriminações, sem julgamentos, como uma mãe que no leito da maternidade recebe em seus braços o seu filho recém-nascido, e o carregaram como as formigas carregam suas folhas. Luiz, de olhos abertos, boiando, contemplava o céu azul, com poucas nuvens. Algumas pessoas que o viram saltar para dentro do rio ficaram atônitas, sem saber o que ele estava tentando fazer, se apenas tomar um banho de rio, ou tirar a própria vida, e gritavam para ele, tentando chamar a sua atenção e, se fosse o caso de ele estar querendo se matar, convencê-lo de voltar para a terra firme. No braço de rio que passa sob a Ponte Buarque de Macedo Luiz de boiando passou a nadar; e nadou até chegar ao Parque de Esculturas Francisco Brennand, onde voltou a pisar em chão seco.
O dia já apresentava sinais de ocaso; uma brisa gelada soprava carinhosamente desde o imenso Atlântico sobre o Recife Antigo, e Luiz, sentado sobre pedras, contemplava a cidade que o viu nascer e que algum dia, mais cedo ou mais tarde, o veria morrer. Via multidão de gente da terra e de outras partes do mundo passeando pelo Marco Zero; gente comendo e bebendo nos bares e restaurantes da beira do rio; via o sol baixando por detrás dos prédios holandeses; e sentia a fome ceder ao cansaço e o cansaço ao sono. Atravessou o rio e vagou pela cidade iluminada pela luz dos postes, dos carros e da lua. Quando ele se deu conta, tinha voltado para o seu lar, para a sua cama quentinha, um banco de praça, onde a fome o embalou em duro sono.