Fascinação

“Sentindo frio em minha alma

Te convidei pra dançar

A tua voz me acalmava

São dois pra lá, dois pra cá

Meu coração traiçoeiro

Batia mais que o bongô

Tremia mais que as maracas

Descompassado de amor

Minha cabeça rodando

Rodava mais que os casais

O teu perfume gardenia

E não me perguntes mais

A tua mão no pescoço

As tuas costas macias

Por quanto tempo rondaram

As minhas noites vazias

No dedo um falso brilhante

Brincos iguais ao colar

E a ponta de um torturante band aid no calcanhar

Eu hoje me embriagando

De uisque com guaraná

Ouvi tua voz murmurando

São dois pra lá, dois pra cá

Dejaste abandonada la ilusión

Que había en mi corazon por ti”

(Letra da música “Dois Pra Lá, Dois Pra Cá” de João Bosco/Aldir Blanc, na voz de Elis Regina)

No seu cantinho, aquela era a sua noite. Toda semana tinha seu dia de nostalgia. As lembranças chegavam de mansinho, tomavam conta. Entre uma dose e outra, entre um cigarro e outro, sempre as mesmas músicas tocando, ele mergulhava no passado. Um ritual que lhe fazia bem. Nem ele mesmo entendia porque depois de tantos anos não conseguia esquecer… Elis cantava: “Sentindo frio em minha alma…” Foi assim…

O baile rolava. Ele tinha jurado a si mesmo que naquela noite a convidaria pra dançar. Nunca tinha coragem. Bebeu uma, duas, três doses. Cadê a coragem? A mais linda garota do baile era altiva, indiferente. Sabia que causava, deixava todos os rapazes sonhando e de queixo caído. Ele apaixonado, doente de tanto amor. Mais uma dose. Era agora ou nunca. Foi caminhando em sua direção, suas pernas tremiam, seu coração a mil, a cabeça rodando. E se ela dissesse não? Ele morreria ali mesmo diante dela e a deixaria bem culpada. “Dança comigo? Ela sorriu e estendeu a mão. Ele sentiu-se desfalecer. Seu corpo todo tremia…

Ao sentir seus corpos se aproximarem, ao sentir seu calor junto de si, sua cabeça rodava mais. “…seu coração traiçoeiro batia mais que o bongô, tremia mais que as maracas descompassado de amor…” Como num sonho ele fechou os olhos e curtiu intensamente o momento. Ela muito tranquila conseguia deixá-lo mais calmo. Dançaram uma, duas, três músicas e ele queria que o tempo parasse e que nunca mais se afastassem. O desejo que sentia o fazia se sentir desconcertado ao mesmo tempo que queria que ela sentisse a reação de seu corpo. E eles rodavam pelo salão, ele se encostava nela e ela não resistia. Será que estava só sonhando? Permaneceram juntos até o final do baile. No final da noite ele roubou um beijo e o guardou num cantinho especial da alma.

O baile acabou, o sonho acabou. Ela voltou à sua indiferença e frieza. Não lhe deu mais chance de se aproximar. A vida seguiu e o que lhe restou foram as lembranças daquela noite encantada, do seu corpo tocando o dela e o beijo que volta e meia trazia de sua alma e se deliciava ao sentí-lo novamente. E a música tocando e sua cabeça rodando… “…eu hoje me embriagando de uisque com guaraná ouvi tua voz murmurando são dois pra lá, dois pra cá. Dejaste abandonada la ilusión que había en mi corazon por ti”

Sua noite de nostalgia acabava, ele voltava à realidade. Sua cabeça rodando pela bebida, seu coração cheio de saudade… Lá dentro sua esposa e filhos já dormiam. Nunca lhe incomodavam naquelas noites de solidão. O filhos não entendiam. A esposa sabia que ele sempre voltava pra ela quando acordava de suas lembranças e devaneios. Não interessava saber em que pensava quando estava tão absorto. Ela era a sua vida real, seu cotidiano, seu amor verdadeiro. Era com ela que ele se deitava todas noites e quando se entregavam era em seus braços que ele gemia de prazer. Era com ela que sua existência tinha sentido, com ela compartilhava a vida real. Não ia se preocupar com sonhos e lembranças de um passado distante, tão irreais e intangíveis.

Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 12/11/2024
Reeditado em 15/11/2024
Código do texto: T8195082
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