FORA DE TEMPO
O gemido era quase constante, com o tempo tornou-se sonoplastia natural do ambiente. O corpo decorava a cama, que decorava aquela morada. O que mudava era a euforia das poucas pessoas que vez ou outra por ali davam uma volta. Mas a indiferença de uma delas não dava sossego: vovó não tem nada, isso é apenas sua cantiga senil, dizia aos demais o neto. No meio de uma semana já embebida de final de ano, uma pequena alteração na rotina da casa: notara-se que os gemidos intermitentes haviam cessado. O neto, curioso, esgarçou a porta e, pasmo, contemplou um ser esquálido recheando o leito. Inconformado com o silêncio incômodo, tocou-lhe o rosto e sentiu a necessidade de propor um diálogo póstumo com quem o criara amorosamente desde tenra idade. Declarou sua afeição tardia à emudecida matéria. Foi tal a comoção que o corpo morto estremeceu. Surpreso com a própria situação, o neto deu-se conta de que estaria agora plenamente órfão de qualquer parente.