FOI SEM QUERER, MAS ESTAVA QUERENDO.

Naquele tempo em que somente o rádio era o meio mais eficiente de comunicação, quando as pessoas ficavam sabendo das novidades com quase um ano decorrido dos acontecimentos, a diversão era artigo reservado a poucos abastados que tinham dinheiro para contratar os artistas para se apresentarem em festas ou nos saraus elegantes das grandes cidades.

A musicalidade sempre esteve presente na nossa sociedade e os instrumentos de corda trazidos pelos europeus ganharam muitos adeptos sendo incorporados ao gosto popular.

Formaram-se duplas de cantores com harmonia em primeira e segunda vozes e aos instrumentos foram sendo adicionados maior número de cordas, até chegarmos à viola que se tornou a companheira inseparável dos poetas repentistas nordestinos e dos heroicos descendentes dos bugres que desbravaram os sertões do Mato Grosso.

Ao acaso do destino, Eustórgio e Tibúrcio formaram uma dupla logo depois que se encontraram num festival de final de ano promovido por prefeitura de interior.

A harmonia perfeita entre as vozes era chocante diante do contraste entre as figuras.

Eustórgio era um tipo formoso. Alto, esbelto, cabelos louros, olhos azuis, sempre impecavelmente vestido, voz grave e cativante capaz de inspirar os mais enlevados sonhos nas moças casadouras da época.

Tibúrcio não chegava a ser o Quasímodo, mas não possuía, além da altura, os demais atributos do seu companheiro de cantorias e a sua voz era, naturalmente uma oitava acima.

Aconteceu que um fazendeiro, para comemorar os dezoito anos da sua primeira filha, resolveu dar uma festa com tudo de melhor que se podia adquirir e mandou contratar a dupla para engrandecer o evento.

Logo na chegada as moças se encantaram com Eustórgio, era seguido por todo canto e aplaudido nas falas mais banais ou gestos previamente estudados.

Quanto a Tibúrcio, teve que se contentar em ficar pelos cantos dedilhando a viola e trocar poucas palavras com os amigos do fazendeiro.

Durante a festa, a apresentação da dupla foi um sucesso retumbante. Além das modinhas tradicionais a dupla executou as músicas de outras terras com a perfeição que o evento requeria.

Mesmo sob protestos, pouco depois da meia noite, a festa foi encerrada e Eustórgio foi levado pela aniversariante para ver o quarto reservado para ele dormir em cama larga, com lençóis cheirosos, travesseiro fofo e manta macia.

Tibúrcio, entretanto, foi destinado a dormir na rede armada no quarto, do outro lado do corredor, quase porta com porta, que servia de depósito para o milho recém colhido e que, como todo cereal, estava sendo visitado por ratos famintos, com muitos gorgulhos por sobre a palha seca.

Tudo indicava que Tibúrcio não teria uma noite muito agradável, mas acontece que Eustórgio sofria do mal da enxaqueca e quando os candeeiros foram apagados, ele pediu ao amigo para trocarem de lugar porque se ele não dormisse na rede, com a cabeça mais elevada do que o corpo, ia sentir tanta dor que nem ia poder se mexer no dia seguinte.

Mais algum tempo, antes de pegar no sono Tibúrcio sentiu alguém se deitando ao seu lado.

Era a aniversariante que havia entrado no quarto pisando mais macio do que um gato com meia de lã, enchendo o ambiente com o maravilhoso cheiro de fêmea no cio.

Na densa escuridão do quarto, a comunicação entre eles se deu por resmungos inaudíveis, mas os corpos se integraram em perfeita harmonia e ao primeiro canto do galo, a moça saiu do quarto tal como havia entrado.

Logo cedo pela manhã, a dupla foi-se embora para outro compromisso e no caminho Eustórgio comentou com Tibúrcio não ter entendido as falas da aniversariante durante o café, cheias de segundas intensões e cobranças das promessas a serem cumpridas em breve retorno...

Depois que Tibúrcio contou os acontecimentos da noite anterior, a dupla se desfez para sempre.