Sangue Azul
Seu Chico tem 81 anos. Diariamente, a passos claudicantes, conduz sua cadela Estaturinha num curto passeio pela praça em frente à sua casa. Ela é uma típica vira latas que se parece com tudo e com nada ao mesmo tempo. Proporcionalmente deve ter a mesma idade do seu tutor. O homem, no entanto, nunca reconheceu a falta de pedigree da cadelinha. Sempre que pode, propaga aos quatro ventos - seguindo suas próprias convicções - a eventual ascendência de Estaturinha.
- É "raceada", ele diz, com "pang", dá pra perceber pelo "zoinho": um no peixe, outro no gato. Também tem muito do "bode cole". Precisava ver a agilidade dela uns anos atrás. O "tamainho" é de "pincha", nem preciso falar... Coisiquinha... É de ótima linhagem. Sangue azul! Não tenho dúvidas.
Por tantas certezas e assuntos, às vezes é difícil achar até quem o cumprimente. O cidadão, como diziam antigamente, é dos que dão "bom dia" a cavalo.
Aconteceu que, em certa ocasião, num desses passeios, Estaturinha foi severamente agredida pelo cachorro do vizinho. Thor, musculoso e intransigente castigou a cadelinha, sacudindo-a pelo pescoço até que ela perdesse a consciência (embora seja lícita a dúvida, se cachorro tem consciência). Seu Chico acredita que ele seja raceado com "petibom". Foi um "Deus nos acuda". Muitos outros vizinhos, e até o seu Rinaldi, dono da mercearia, auxiliaram o seu Chico. Correram com o animal para a clínica veterinária mais próxima. Felizmente, ferimentos superficiais. No calor dos acontecimentos, ninguém percebeu a caneta esferográfica vazada justamente no local da ocorrência. Por alguma questão olfativa, a mancha fora aumentada pela urina de outros cachorros.
E até hoje o seu Chico aponta, com a voz rouca, o famigerado pedacinho da calçada.
- Ali ó, o sangue da Estaturinha. Azulinho, azulinho...
Ninguém ousa contradizê-lo. Seria assunto para um dia inteiro.