Amélia
Amélia era uma pobre órfã de nove anos.Tinha uma pele de tom castanho, parecia bronzeada, mas não uma cor natural. Possuía cabelos crespos. Olhos esbugalhados. Sua magreza, com os ossos saltados evidenciava como estava desnutrida.
Veio ao mundo com ajuda das mãos de uma parteira, na maior favela da zona norte de São Paulo, na Serra Pelada, uma imensa área ao pé da Serra da Cantareira, o local possuía um proprietário, mas ninguém sabia quem era. Deixaram-no abandonado como um terreno baldio, então vieram as pessoas carentes que se apropriaram do espaço e construíram suas casas de lata. Sua mãe trabalhava como empregada doméstica em casas de pessoas abastadas, onde ela passou seus primeiros anos, escondida nos cantos escuros da cozinha, vestida com roupas remendadas por sua mãe. Ficava emudecida, porque a patroa não gostava de criança.
Sua mãe dizia que a patroa era uma excelente pessoa. Obesa, rica, se sentia dona do mundo, admirada pela igreja pelos dotes que ofertava tinha a certeza de que havia um lugar para ela no céu. Entalada na poltrona de cor amarelo-ouro, como se fosse um trono, ali bordava, assistia televisão, ouvia música, recebia amigas e as pessoas do clero. Nesses encontros discutiam o tempo todo sobre tudo e nunca chegavam a um acordo. As visitas, mesmo estando certas, deixavam a conversa terminar, porque ela sempre tinha razão, não aceitava a opinião de ninguém era muito teimosa. “Uma culta senhora, caridosa, com virtudes religiosas e morais”, dizia o reverendo sobre dona Angelina.
A patroa não suportava nem admitia crianças remelentas, birrentas e que ficavam correndo pela casa. Isso a deixava irritada. Viúva e sem filhos, não aturava choro alheio. Longe da cozinha, quando ouvia a triste menina resmungar, gritava nervosa: quem é a peste que está chorando? Assim eu não consigo me concentrar.
O choro nunca vinha sem razão: a fome, o frio dos pés descalços e o abandono lhe faziam sofrer. Assim cresceu Amélia, magra, desnutrida e com os olhos assustados. Órfã aos cinco anos, ficou por ali abandonada. Não compreendia os adultos. Apanhava por qualquer motivo, seja por ação ou omissão. Suas atitudes provocavam ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andou. As desculpas eram que, se livre no quintal, estragaria as plantas, então a boa senhora punha-a na sala, perto de si, atrás da porta. “Fique aí sentada e em silêncio, entendeu?” Amélia ficava encolhida em um canto, horas e horas, sem dizer uma palavra ou pedir algo de tanto medo.
Encolhida, com os braços cruzados nos joelhos a tremer de medo e os olhos assustados, o tempo corria. O relógio da sala tinha um cuco engraçado que chamava a sua atenção. Um passarinho colorido saía da gaiola. Ao vê-lo sair, abrir a janela e cantar o cuco, nas horas certas, com o bico aberto e batendo as asas, fazia lhe sorria feliz por um instante.
Que idéia faria de si uma criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Suja, bruxa, encardida, pestinha, favelada e coisa-ruim. Ela não conseguia enumerar os incontáveis apelidos pelos quais a chamavam. Nem mesmo ela, coitada, sabia a origem do seu nome Amélia, que significa trabalho e esforço, um nome feminino que possui uma história rica e positiva, que ao longo dos séculos várias mulheres notáveis usaram-no deixando um legado marcante. O corpo da menina era marcado por sinais, cicatrizes e vergões. Batiam-lhe todos os dias, caso houvesse ou não motivo. Seu corpo exercia nos cascudos, crocres, beliscões e palmadas a mesma atração que exerce o ímã sobre o aço. As pessoas que batiam-lhe riam ao ver a sua expressão de dor.
A caridosa e bondosa dona Angelina era a que mais maltratava a menina. Nunca aceitou o fato de não poder ser mãe. Revoltada descontava sua ira na órfã. Mantinha a menina em casa como remédio para seus frenesis.
Angelina aliviava a sua alma com uma boa roda de crocres bem dadas. Tinha que se contentar com a sua crueldade. Crocres: mão fechada e com raiva e o nó de dedos que faz uma dor picante. Puxões de orelhas com as duas mãos e o sacudido. Os beliscões, tapas na cabeça, cascudos, pontapés e safanões eram divertidíssimos!
Um dia quando estava almoçando, a nova empregada pegou do prato da Amélia um pedaço do bife que ela tinha guardado para o final da refeição. A criança ficou revoltada e disse-lhe todos os nomes feios que ouvia todos os dias.
"Bruxa eu? Fique aí!” disse a empregada e foi contar o caso à patroa.
Dona Angelina estava naquele dia muito irritada, nervosa e precisando descarregar o estresse. Ao ouvir da empregada todas as obscenidades que Amélia falou na cozinha, a patroa ficou vermelha de raiva, era tudo o que necessitava para extravasar o seu dia de fúria.
“Deixa comigo que eu vou dar um jeito nessa pestinha” disse dona Angelina, levantando-se do seu trono sacudindo sua banha e indo para cozinha.
“Venha cá!” disse dona Angelina.
Amélia se aproximou, dona Angelina pegou as orelhas com suas duas mãos e sacudiu a cabeça da menina como se fosse um saco de farinha. Ao esgoelar-se disse: “Nunca mais diga nomes feios para os adultos outra vez, porque terás um castigo pior do que este, ouviu bem sua miserável?” Depois a bondosa dama retornou satisfeita para o seu trono na sala, para receber o vigário que chegava.
“A benção! Monsenhor, não se pode ser uma pessoa boa nessa vida. Estou criando essa menina órfã como se fosse minha filha, dou-lhe de tudo, carinho, amor e atenção. Que trabalheira que ela me dá! O senhor nem pode imaginar.”
“A caridade é a mais bela das virtudes cristãs, minha generosa senhora” disse o vigário. “Deus sabe tudo, vê tudo e sabe perdoar. Cuidar das pessoas, fazer caridade, ajudar os necessitados, cansa. Eu sei disso e compreendo o seu sofrimento e sua angústia. Mas Deus está vendo a sua generosidade e terá o reino do céu.”
“Amém! Sua palavras me confortam padre, me dão ânimo para continuar com a minha benevolência”
"Quem dá aos pobres empresta a Deus. As obras de caridade da nossa igreja necessitam de ajuda" disse o padre e a generosa senhora suspirou aliviada. “Eu não faltarei com o meu dever.”
Em dezembro veio passar as férias de verão com a tia Angelina, uma sobrinha, uma menina linda, cabelos louros cacheados, rica, nascida e criada numa família abastada.
No seu canto na sala do trono, Amélia viu surgir um anjo entrar pela casa. Uma menina alegre, pulando, rindo e correndo com seus cabelos cacheados loiros a bailar. Ela olhou para a senhora, certa de que haveria um castigo à invasora que perturbava o seu sossego. Mas não, Dona Angelina ria de felicidade. Então não era crime correr, gritar e brincar em casa? Estaria tudo mudado? Era o fim do inferno na terra e estava aberto o céu? Na sua fascinante fantasia, Amélia levantou-se para a festa infantil, encantada pela alegria do anjo que nunca tinha visto. Mas a dura desigualdade humana feriu seu coração. Mediante uns crocres a patroa disse: “Já para o seu lugar, sua miserável! Não se enxerga?
Com lágrimas nos olhos, ela encurvou-se e recolheu-se no cantinho escuro.
“Quem é, titia?” perguntou a sobrinha, curiosa.
“Quem devia de ser? disse a tia fazendo-se de vítima. Uma caridade. Eu não aprendo, vivo criando essa pobre criança de Deus. Uma órfã. Mas brinque, corra, a casa é grande e tem muito espaço por aí afora.” Como seria brincar? Refletiu Amélia que até agora só via brincar na sua imaginação com o cuco do relógio da sala.
A empregada abriu as malas da sobrinha e tirou os brinquedos. Do nada surgiu, como se fosse dentro da cartola de um mágico, um cavalo de pau! Que maravilha! Amélia arregalou os olhos. Ela nunca tinha visto um e nem sequer imaginava um brinquedo tão bonito. Um cavalinho! E tinha mais, muito mais. O que era aquilo? Uma menininha de cabelos loiros, que chorava, falava mamãe, estou com frio, abraça-me, gosto de ti, que dormia com um chupeta na boca.
Os olhos de Amélia brilhavam de emoção. Ela nunca tinha visto uma boneca.
É feita de quê? Perguntou admirando a boneca.
Curiosa em ver de perto e segurar nas mãos, aproveitou que dona Angelina havia saído da sala para cuidar da arrumação do quarto da sobrinha. Amélia aproximou-se da boneca de plástico com vestido colorido e sapatinhos brancos. Olhou-a com assombrado encanto, sem jeito, sem ânimo e envergonhada de pedir para segurá-la um pouco no seu colo. A sobrinha da dona Angelina ficou admirada ao ver aquilo.
“Você nunca viu uma boneca?” perguntou à menina.
“Boneca” repetiu admirada. “Ela se chama Boneca?”
A sobrinha da dona Angelina ria de tanta ingenuidade. “Como você é boba!” disse. “E como você se chama?”
“Amélia”
A menina voltou-se a rir; mas vendo que a admiração da Amélia perdurava, disse, apresentado a boneca:
“Pegue!”
Amélia olhou para todos os lados, temerosa e com o coração palpitando. Que aventura, meu santo Deus! Seria possível isso? Pegou a boneca. Segurou-a com cuidado, como se fosse um bebê recém-nascido e sorriu para a menina, mas continuava apreensiva e olhava para a porta. Estava fora de si, era como se penetrasse no céu e os anjos a rodeassem, vendo um anjo adormecido ao colo. O encanto era tanto que não viu a senhora chegar de volta à porta. Dona Angelina parou, nervosa, mas passou alguns instantes apreciando a cena.
A sobrinha estava alegre e Amélia tão encantada com a boneca, que o seu duro coração amoleceu. Foi a primeira vez na vida que se aquietou. Amélia tremia, passava-lhe num relance pela cabeça a imagem dos castigos. Lágrimas de pavor corriam pelo seu rosto. Seu corpo tremia de cima a baixo. Mas o que aconteceu foi a coisa mais inesperada do mundo, até difícil de se acreditar. Dona Angelina disse as palavras que jamais Amélia tinha ouvido um dia: minhas queridas meninas, vocês são um doce na minha vida.
“Vão brincar no jardim, correr, pular minha queridas meninas” Amélia olhou para a patroa, com os olhos assustados. Mas por puro encanto, não viu mais a fera que gritava com ela como uma maluca. Desconfiada, sorriu. Variava a cor da pele, a condição financeira, mas as almas das meninas eram as mesmas, na princesinha e na órfã. Para elas a boneca era o supremo fascínio.
Amélia percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Estava maravilhada com o mundo que trazia dentro de si como a fulgurante flor de luz. Sentia-se humana, não era mais uma coisa qualquer. Se não era mais uma coisa, um trapo largado num canto, então ela se sentia viva. Sim, tinha vida e vibrava! Foi essa sua consciência que a matou.
Terminaram as férias de verão, sua única amiga partiu levando consigo a boneca e toda felicidade que jamais sentiu. E a casa voltou ao seu ramerrão. Só não voltou para Amélia. Sentia-se outra, havia se transformado em outra menina.
Dona Angelina, refletia, já não a incomodava tanto como outrora, na cozinha uma criada nova, obediente e de bom coração, isso amenizava-lhe a vida.
Amélia mergulhou em um abismo de melancolia. Mal se alimentava e perdera a expressão de susto e pavor que tinha nos olhos. Trazia agora nostalgias e cismas. As férias de dezembro, foi um doloroso inferno que envenenara.
Brincar no jardim era divertido. Acalentava seus dias seguintes, a linda boneca loura, tão querida, dizer mamãe, gosto de ti, abraça-me, estou com frio e fechava os olhos para dormir. Foi um sonho. Desabrochou a sua alma.
Partiu, afastada de todos, como um passarinho adormecendo. Jamais alguém morreu com tanta beleza. No seu delírio estava rodeada por bonecas, todas louras, olhos azuis, como uma roda de ciranda. Sentia-se agarrada por aquelas mãozinhas delicadas, abraçada e rodopiando.
Sentia uma tontura, uma névoa que envolvia tudo. E tudo desapareceu. Ao longe ressoavam vozes, distante, era a última vez que o cuco lhe apareceu de boca aberta. Estava imóvel, sem bater as asas.
Foi-se apagando e tudo se desvaneceu na escuridão.