Miniconto #5: O Anjo Invisível

Odorico despede-se do garçom às sete da manhã. O sol, refletido na janelas vizinhas, sugeria um dia quente. Mas a noite não poderia acabar ali. Mantinha o rosto inchado, vermelho. A voz rouca e o cérebro mexido com os rastros e o rosto de Solange. Faltava coragem para tomar o rumo, para seguir em frente.

Deu três passos na ladeira e tropeça em solavanco. Seu corpo toma a proporção da gravidade e encontra o asfalto. A cabeça girando frases e apoiada no batente com os cabelos de suor grudados na testa.

Do chão abria um horizonte novo. Inexplorado: o movimento de pernas aleatórias se movem no ir e vir, causando inicialmente um entretenimento de dores e lembranças. Todos andavam com pressa. Sapatos lustrosos. Sapatos sujos e até alguns pés descalços cortam a paisagem.

Odorico enxerga crianças de mãos dadas com suas mães. A rua enchia. Mas para toda aquela gente o pobre homem era invisível. Como se a tristeza e o conhaque o tivessem transformado num fantasma sem corpo e fisionomia.

Todos passariam ali, menos Solange. A mulher o abandonara e fugiu para a Espanha deixando-o com seus dois filhos. Mas a despeito de tudo havia ali um conforto. Enquanto os sapatos iam e viam em sua direção, pairava na calçada uma profunda anestesia moral e súbito não lembrava de Solange, nem dos filhos e tampouco de si. Não havia saudade nem nada. Talvez lá no fundo latejasse uma pena serena de nunca ter sido nada.

Talvez.

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