O DOM DA INVISIBILIDADE
— Moço!
Por que nessas situações o olhar torna-se magnético? A mão pequena e suja de rua, com os dedos unidos e a palma para cima representavam todo o texto. A camiseta puída, furos em pontos aleatórios, o calção bem maior no quadril esquálido, os pés imundos. Nada disso entra no foco. Nem mesmo a pequena gota de muco se insinuando na narina. Quando voltamos a atenção para aquele pedido, o olhar nos captura.
Olhos verdes e claros, com um traço de lágrima escondido nas pálpebras inferiores, um ponto minúsculo de ramela no direito. Só então reparei no rosto, no conjunto e no sorriso tímido. Girou a mão, apontou para a metade do lanche que eu segurava.
— Vá se embora, moleque! Deixa o freguês em paz.
Ergui a mão livre e fiz o balconista se calar. Ainda estávamos olhos nos olhos. Estiquei a mão com o alimento e entreguei. Desviou os olhos para o balcão e saiu correndo pela calçada até sumir de vista.
— Não devia dar trela para eles. Logo fazem uma fila aí pedindo ajuda.
Pensei naquilo jogando as migalhas de pão na boca. Acompanhei os movimentos do balconista, terminando de lavar a louça na pia. Movimentos rápidos. Mecânicos. Como alguém se considerando atrasado por natureza. Sem prazer algum em trabalhar.
Dentro de sua mente calculista não se dá conta do único objetivo naquela rotina diária. Um objetivo oculto. Se tentarmos esfregar o motivo no nariz dele, provavelmente irá negar. Não aceitará se curvar às evidências. Sua vontade maior no correr do seu “dia a dia corrido” — executando tarefas mecanicamente —, é ao final do expediente poder sentar-se de banho tomado e barriga cheia diante da TV para ver o futebol das quartas. Só quer seguir a rotina. Das cinco da manhã de segunda até as dezoito horas de quarta. E novamente ao amanhecer de quinta ao horário de almoço no domingo.
— Quanto sai um pão com manteiga? — perguntei ainda mastigando os cacos.
Uma sombra distante de repreensão por parte do fantasma de minha mãe gritou: “não fale de boca cheia!”. Não estava cheia. A voz saiu quase perfeita. Ele não respondeu. Continuou de costas e apontou a tabela na parede com o queixo. Um desdém. Mais um. Os números marcavam um e cinquenta.
— E quanto é que lhe devo aqui? — perguntei outra vez. Uma parte do meu cérebro quis comparar o tom de voz antes e após engolir. Afastei o pensamento. Ele se virou de olhos baixos para o prato onde estivera o lanche.
— Dez, quatro, quatorze no total.
Paguei e saí para a calçada. Olhei ao redor, subindo a Pedroso Alvarenga e esquadrinhando a Renato Paes de Barros, quase até a Jesuíno e voltando para a Nove de Julho. Lá estavam. Duas crianças e um adulto. Sentados na calçada defronte ao restaurante. Voltei para o interior da padaria.
— Faz seis pães com manteiga para viagem. E três suco de laranja no copo grande. Cacei na tabela o valor do suco e fiz as contas mentalmente.
Os olhos reprovadores estavam ali de novo. Na primeira vez estavam escondidos ao lavar as louças. Uma aversão procedente até certo ponto. As pessoas mortas de fome circulando pelo interior da padaria incomodam os clientes. Ainda mais ali na Zona Sul. Mas a situação não está fácil para ninguém. A cidade é enorme, mas nem todos têm oportunidades.
Um balconista não é imune a essa inexorável lei da invisibilidade. Enquanto está ali em posição de destaque, prestando serviços por um salário muitas vezes absurdo, será sempre notado e requisitado. Mas quando chega a hora de picar o cartão e se enfiar no caminho de casa, será desconsiderado pela grande massa. É possível passar incólume por uma multidão sem ser notado. Seja por querer não ser notado. Ou porque pouco se importam contigo.
Enquanto estava de costas preparando meu pedido, tinha minha atenção e vice-versa. Pedido pronto e conta paga, pouca ou nenhuma serventia tínhamos um para o outro. Morreríamos à mingua se um balcão de padaria não nos unisse.
Peguei o pacote e segui pela calçada em direção aos três. Mantive o olhar naqueles desafortunados seres humanos sentados no chão de concreto duro e gelado. Pessoas iam e vinham e fingiam não notar. Fingiam? Não notavam, essa era a verdade. As pessoas se impõem um comportamento de ignorância visual. Desvencilham-se de obrigações.
Um homem de terno se aproxima e faz gestos em direção ao outro lado da rua. É o segurança do restaurante. Comportamento similar ao do balconista da padaria: “não incomodem os fregueses com sua presença”. Ali, no entanto, o espectro de invisibilidade é maior.
Os clientes de um restaurante cinco estrelas são raros. Chegam sem tirar os olhos de seu objetivo. O entorno pouco importa. O nome do lugar e a decoração da fachada também. A gentileza do recepcionista ao abrir a porta, educadamente, é retribuída com um sorriso falso e instantâneo. Gente invisível. O garçom lhe servirá a mesa. Poderia muito bem ser translúcido. Um robô. Se um PDA estivesse acoplado à mesa, o cliente não precisaria interagir com ninguém além de seus convidados.
Do lado de fora, já do outro lado da rua, ofereço o pacote com os alimentos:
— Não é muito, mas é de coração.
— Virge Maria. Brigado Seo moço! Deus o abençoe.
Um sorriso cheio de dentes amarelados e sinceridade. E então, enquanto permaneço ao lado deles, limitando-me a ouvir as desventuras que os levaram até esse momento, sinto os olhares perscrutadores atingindo-nos. Naquele instante, com a caridade se processando — não apenas o de comer e beber, mas principalmente o ouvir —, deixam de ser invisíveis. O malfadado dom se perde.
Ouço o fantasma de minha mãe se pronunciar outra vez: “já que se meteu com esses aí...” — o ranço era cultural no caso dela. Também se metia com caridade. “Seja educado e pergunte os nomes” — dizia — “É um ato de amor chamar as pessoas pelo nome.” Amor. Tornar as pessoas visíveis mesmo sendo só por um momento.
Alcebíades, o pai, falou sorrindo o nome das crianças: Fernanda e Fábio. O menino é o da “mãozinha” da padaria. A mãe os deixou para ele cuidar. A menina uma pré-adolescente cheia de vergonha. Enquanto foi possível sustentar tudo com ajuda dos vizinhos, tudo bem. Mas perdeu o emprego e Fábio ficou doente. Perderam o aluguel, o rumo e tiveram de se virar. Dormiam na praça, próximo ao cruzamento da Faria Lima. Na sombra da seringueira centenária. Tinham um esconderijo para os pertences. Pouca coisa. Cobertores puídos e algumas roupas. O que sobrou. Viviam de ajuda.
Minha cultura insistia para girar a cabeça e confrontar o olhar das pessoas, passando e medindo a cena e os personagens. Mas o fantasma de mamãe recomendava: “mantenha os olhos em quem está falando. Seja educado.” O silêncio, como sempre, era a atitude mais confortável naquela situação. Muitas pessoas filosofam a respeito de momentos assim, onde procuramos sem cessar uma frase útil, confortável e decente. E também em como nos apegamos ao silêncio.
Despedi-me desejando sorte. A alegria de ter colaborado e cumprido com a missão do escoteiro, a boa ação do dia se apresentou. Ao dobrar a esquina, a dúvida me assolou: quantos estariam sem aquela pequena refeição da manhã? Quantos estariam como eu, com o fuso horário avariado por outros motivos? Café da manhã às onze da manhã. Eu por dormir demais. Alcebíades pelos infortúnios.
É engraçado como há milhares e milhares de riquezas guardadas em contas correntes, aplicações, investimentos financeiros, ações, e um contingente tão absurdo de pessoas ignoráveis. Ações? Não. Ações não se guardam. Ou se atua ou se dispara o raio da invisibilidade, ignorando o necessário para uma existência egoísta. Desprezamos progressivamente tudo o que nos cerca. Ansiamos por paz.
Entro no condomínio e o porteiro me saúda. Como sempre, paro, pergunto sobre o futebol, a manchete de jornal, o vazamento no 71. Apenas por gentileza. É um dos poucos com quem mantenho algum tipo de diálogo ali. Amizade? Talvez. Dei-lhe um panetone no Natal passado.
Há três pessoas no lobby. Apresento meu melhor sorriso, mas recebo o mesmo cumprimento falso e instantâneo dos clientes do restaurante. Agora o ignorável sou eu. Dentro do elevador de serviços, uma lembrança da tela do aplicativo de mensagens. Você se esforça para compor uma frase positiva e motivacional, anexa tudo a um desejo de bom dia e um recorte de alguma reflexão poderosa dos seus grandes ídolos. Recebe um emoji de resposta. Um GIF.
Pessoas sem identidade, sem trilha sonora, como concordaram dois grandes amigos certa vez. O interesse muda conforme o tempo passa e certas coisas vão ficando invisíveis por necessidade de não ter mais tempo a perder. Mas qual a razão de ter tempo hoje em dia? Buscamos agilidade com todas as nossas tarefas e esquecemos do principal: usar BEM o tempo. Vamos retirando as coisas do caminho. Até mesmo amigos.
O mecanismo de recompensa cerebral busca no amontoado de memórias a ideia de escrever algo realmente emocionante e gravar uma mensagem aos amigos e parentes intitulada “Guardem a Minha Voz e Respondam com a Sua”. Uma maneira de eternizar-se na mente das pessoas.
O Dom da Invisibilidade vem para todos. Nomeio de “Dom”, mas com o passar dos anos sou tentado a acreditar que se trata de uma maldição. Giro a chave na porta da cozinha e escuto o vizinho fazendo o mesmo. É a esposa carregando um saco de lixo. Experimento sorrir outra vez. A retribuição dessa vez vem com dentes.
— Bom dia! Quase boa tarde já!
— É.
Não tenho assunto. Fica o meu “é” pairando entre dois sorrisos. Ela ergue a mão e volta pela porta. Entro no casulo. A cozinha toda arrumada e limpa. A sala de estar solene como uma biblioteca. Ainda sinto um rastro do lustra móveis no ar. A faxineira veio ontem. Outra invisível. Pessoa de confiança de Maria Cândida.
A pobre mulher não conseguiu erguer os olhos para falar no dia em que quebrou um vaso de porcelana. Nada absurdo. Já avisara diversas vezes: aquele vaso deveria ficar no chão ou no centro da mesa de jantar. Talvez até no banheiro, no canto, com as revistas enroladas e enfiadas nele. Invisível, imperceptível. Um elemento a mais na paisagem. Não acrescentaria ou revogaria nada.
Quando deixou de existir, aliás, não provocou mudança nenhuma. A sala de estar continuou a mesma e o aparador continuou com a bandeja de palha onde deixávamos — e eu ainda deixo — chaves e correspondências que demandam alguma ação futura.
Ali estavam duas faces da invisibilidade. A faxineira querendo tornar-se invisível e livrar-se de alguma pena ou castigo. Algo fácil de se conseguir. Bastava sair as ruas e misturar-se. Desapareceria aos olhos de muitos.
Maria Cândida ouviu meus conselhos e não fez nada. “São coisas que acontecem”, disse. A mulher ficou grata e faz de um tudo para me agradar e manter o emprego. Mais fácil aqui, pois estou só. “Não fui trabaiá pra ela purque fica longe pur dimais”. Ergo os olhos para o retrato na parede. O reflexo do sol na janela não me concede visão plena e fico apenas com a imagem da foto de memória.
Um homem de terno e uma mulher com vestido de noiva. Dessa posição vejo apenas os pés. Aquela noiva saiu pela porta da sala de estar, deixando aquela impressão particular em cada centímetro cúbico do lugar. Uma “herança”. A pessoa mais invisível que conheço e inevitavelmente presente.
Essa atmosfera sisuda da sala de estar parece mais algo estabelecido por uma presença fantasma. Quero desesperadamente torná-la realmente invisível. Mas não há ambiente onde não a pressinta. Nesse espaço ela reina. Não está e não mais estará, mas é só dela.
Fui insensível. Todo o meu mundo ali a um toque de carinho. Estava cego. Não me dei conta do tamanho da ignorância em distribuir o dom da invisibilidade à pessoa mais importante da minha vida. Obtive sucesso, claro. Ela se foi com o dom e fiquei com a maldição.
Agora está “longe pur dimais” e convivo com a ausência. A sua invisibilidade. E invisível me torno também.