O Gato
José pintou a casa dele, a primeira vez desde que a construiu no braço, trinta anos atrás. Mas seus 60 anos agora o impediram de ele mesmo o fazer, tendo de pagar a Vaguinho, o pintor, realizar o serviço.
Gastar as economias da poupança pelo menos valeu a violência financeira sofrida: agora, sempre que voltava da padaria, logo no amanhecer, a tinta nova cintilava os raios do sol, lembrando-o do tempo em que podia construir uma casa sozinho e sem incomodar ninguém.
Em uma dessas manhãs reparou que a casa próxima à sua recebia mudança. Talvez ele nem viesse a saber do acontecimento se não o presenciasse, tão ocupado estava em passar despercebido no bairro.
Essa alteração ambiental, entretanto, iniciou as aporrinhações que José veio a sofrer.
Um dia, ao abrir o portão para ir à padaria, José viu que a parede estava suja de pegadas de gato. Essa conspurcação o atingiu fundo na alma. Xingou pesadamente o gato, e mais ainda o seu dono. Obstinado como era, nesse dia José ficou de tocaia em seu quintal com o fim de saber qual era o gato e o demônio que o soltara.
Sem sucesso. Ele mesmo teve de limpar a parede.
Dois dias depois, o gato enlameou o mesmo lugar. Contudo, José teve sorte de ver que o animal, grosso e cinza, entrava pelo portão aberto da casa em que se mudaram recentemente. Dirigiu-se para lá e bateu palmas. Do portão corroído de ferrugem uma mulher precocemente carcomida o atendeu.
- Bom dia! Sou seu vizinho – e apontou a casa dele. – O gato que entrou aqui é seu?
- É meu, sim.
- Olha, eu não vi... Mas acho que ele sujou a parede da minha casa, e não é a primeira vez.
- Se não viu, não foi ele.
- É, pode ser... De qualquer forma, prenda o gato, por favor, não quero ficar limpando todo dia a parede que acabei de pintar.
- Pode deixar! Sou uma tutora responsável e não quero que Eliot cause dor de cabeça para ninguém.
- Obrigado!
Com efeito, o gato que sujou o muro era da vizinha. Durante o dia ela o mantinha junto de si em casa; à noite, para conseguir dormir sem o animal ficar miando e querendo sair, soltava-o, e ele, como um rei em seus domínios, solenemente perambulava ignorando o direito de propriedade alheio.
A vizinha participava de um grupo de protetores dos animais, cuja página na internet era Anjos Peludos, que acreditava os animais terem os mesmos direitos que as pessoas têm. Tão logo ela fechou o portão, correu postar na internet que um homem velho e rancoroso odiava gatos e que as pessoas deviam ficar atentas com seus filhinhos peludos.
José, por outro lado, acreditou no fim de seus problemas e limpou novamente a pintura quando voltou para casa. Não se importava se a vizinha tinha um milhão de gatos, mas o direito de ela ter o animal não era superior ao de ele manter a sua casa limpa.
O leitor deve, agora, fingir surpresa ao saber que o gato continuou invadindo a casa de José.
- Gato filho da puta! Vou acertar seu passo!
Na página da internet a vizinha postava: “o Eliot já é amigo de todo mundo. Se adaptou muito bem”.
Realmente: Eliot não se fazia de arrogado. Se sentia o cheiro de outro gato nas inúmeras casas que visitava sem convite prévio, boxeava ferozmente o coitado encarcerado, que não recebera a mesma sorte que ele em ter um tutor esclarecido quanto aos direitos dos animais para o deixar solto como Eliot.
Querendo resolver a situação, porque limpar a parede todos os dias se tornava ridículo, José foi a uma agropecuária se informar sobre como limitar o poder do imperador felino que insistia aristocraticamente reinar na sua casa. Ouviu várias maneiras, todas elas caras, e escolheu a mais barata, porque a vizinha não o apoiaria em destronar o monarca; era um borrifador aromático que dizia espantar os gatos.
- Isso funciona, Toninho?
- Diz que sim. A vizinha não moveu a bunda para resolver?
- Bah! Pra ela todos tem que aceitar que o gato faça o que quiser.
- Só tem arrombado nesse mundo... E Não vai levar semente de girassol para as maritacas?
- Hoje não. Capaz daquele demônio acabar matando tudo.
Já na sua casa, José descarregou o produto no muro, densas borrifadas, snif snif snif, até acabar. E não precisou esperar o dia seguinte para saber que falhou, pois, de madrugada, o gato, que além de reinar, passou a ensaiar serenatas. José não se surpreendeu: também, por aquele preço, o que eu esperava? Às nove horas vou tentar as autoridades.
E numa procissão pelas instituições públicas, a Polícia informou que sem prova quase nada poderia ser feito; a Prefeitura, após uma espera de duas horas numa fila interminável, também não o consolou, e ainda disse que o Juiz proibiu fazer qualquer coisa contra animais soltos.
- Então eu tenho que aceitar?!
Ninguém lhe respondeu. Inconcebível. As pessoas simplesmente não pensam nas outras.
Mas no fim da tarde, inconsolável, enquanto ouvia seu rádio de pilha no quintal, recebeu a visita de um antigo amigo que morava na roça, para o qual contou a patacoada que o vitimava.
- O certo era matar a vizinha, não o gato – segredou o amigo.
- Também acho. O gato só faz o que é da natureza... Mas ninguém me ajuda.
- Deixa comigo. Amanhã dou veneno de rato. Mete numa sardinha, e o desgraçado entroncha.
Depois de refletir um pouco, José respondeu:
- Pois sim.
Dois dias depois, enquanto José abria o portão, ouviu a voz estridente da vizinha fender o ar:
- Puta que pariu! Ah!...
José sorriu e passou maravilhosamente bem o dia. À tarde, um policial civil bateu no seu portão.
- Do que se trata? – perguntou José calmamente.
- Um gato morreu envenenado...
- Que tragédia! Ninguém respeita ninguém mais mesmo.
- O senhor está intimado para ser conduzido prestar esclarecimentos.
- Eu?
- A tutora disse que você era o único que reclamou.
José entrou na viatura. Em seu íntimo só exista paz em ver a parede da sua casa refletindo o pôr-do-sol.