Filosofia de Botequim
Injustamente se criticam bares, tavernas e estabelecimentos familiares. Não há só conversas edificantes dentro destas instituições tão velhas quanto o mundo, que funcionam como um atrator de Lorenz do gênero humano. Desde antes do nascimento de Cristo, as tavernas, mães dos bares modernos, ajunta as pessoas para socializarem; nessa ocasião, sendo diferentes bocas refletindo diferentes pensamentos, alguma orelha sortuda garimpa coisas do seguinte quilate.
- A inflação, com o papel-moeda, encontraria limite de corrosão na carência de meios de imprimir o dinheiro. Esse obstáculo caiu quando surgiu a moeda-fiduciária eletrônica, cujo horizonte era proporcional à capacidade do computador armazenar dados. A realidade, todavia, remédio pra prepotência humana, nos limita novamente a expansão monetária, só que dessa vez através da crise energética.
- Traduz, Bruno.
- Sem energia, Fernando, como os computadores funcionarão? O Brasil é ou está inviável. Não sei se impossível. Mas se não implodir com uma crise fiscal, explodirá economicamente.
- Exagero. O PIB cresce, o desemprego cai, a indústria se recupera...
- Você é otimista demais. O PIB cresce porque a despesa pública cresce. Há empregabilidade (de vagas não formais ou produtivamente relevantes). E a indústria não expandiu, apenas recuperou o espaço perdido desde a década oitenta.
Os dois homens, engravatados, entre trinta e quarenta anos, bebiam cerveja num copo americano suado. O pôr-do-sol era uma distante bomba laranja e opaca num céu entulhado de pó e fumaça. Sentia-se o peso do ar acumulando sujeira nos pulmões.
- E não se engane – continuou Bruno. - Mais de cem dias sem chover. No ano que vem, a pujança agropecuária será mais um capítulo do gordo livro de fracassos brasileiros. Aí eu quero ver se haverá atividade econômica suficiente no serviço e na indústria para estado e sociedade disputarem.
- Do jeito que está, logo será possível fazer uma bola de fuligem só de espremer ar na palma da mão – debochou Fernando.
- Ou o governo pagou para a mídia não publicar ou ela está abafando, porque é inconcebível que não haja discussão sobre falta de água. Logo depois do segundo turno das eleições municipais esse problema magicamente aparecerá, assim como, puf, desapareceu o covid, que toda semana sofria mutação e não havia vacina na terra que desse conta do morticínio causado por esse monstro.
- Você fala como se tudo fosse proposital. Somos uma nação nova sedimentando uma democracia conquistada recentemente. Colônia por trezentos anos, monarquia por setenta, república só cem. Tenha paciência. Acredite nas instituições. Roma não se fez em um dia.
- Roma caiu. Somos uma colônia ainda. Sim, colônia... Não deveria ser surpresa. Quando começou a expansão marítima, Portugal já era uma nação falida. Então a colonização do Brasil servia exclusivamente para salvar a metrópole. Quem aqui pisava não queria viver, construir, ter uma vida nova, só enriquecer e voltar para a Europa. Se quem deu sorte ignorava o destino desse lugar, os malogrados muito mais, preocupados que estavam em recolher as sobras que os vencedores deixaram para trás. E isso passou de geração em geração, até hoje. O assunto principal deste lugar foi, e ainda é, a economia. Estamos há mais de quinhentos anos obcecados com ela.
- Mas de onde veio essa ideia de colônia?
- Brasília é a metrópole, os estados as capitanias hereditárias, e os municípios são o que sempre foram: latifúndios de senhores de engenho, coronéis e baronetes. Espere que eu explico mais. Todo dinheiro do país (principal bem em que é autossuficiente) sai do município e vai para a capital estadual e federal, depois retorna em migalhas aos municípios. Para tan-to, é necessário que haja capital político de apoio local; a distribuição de receitas públicas opera como se fosse dividendos da coligação. Qual a diferença disso para os benefícios que a coroa portuguesa oferecia aos sesmeiros? Aliás, depois que tiraram a capital nacional do Rio e a fortificaram em Brasília, ficou claro que a metrópole estava muito próxima da colônia e precisava se proteger geograficamente. Por isso eu não vejo nenhuma diferença de hoje com o tempo da colônia; só trocamos o caminho da produção pela brilhante ideia de não enviar a riqueza para a Europa, com a ironia de que, começando o povoamento colonial pelo nordeste, e sendo este o primeiro a ser explorado, agora Brasília espolia e suga o sul e sudeste para distribuir ao norte e nordeste, numa revanche histórica.
- Cuidado que acusariam você de xenofobia, Bruno. Se somos uma nação, faz sentido que haja distribuição da produção aos locais menos favorecidos. A própria constituição assim determina para ser construída uma sociedade justa. Não digo que sua visão esteja essencialmente errada, mas também não digo que seja certa. O progresso leva tempo, e se o modelo atual é uma farsa, o que você sugere?
- Como não posso mudar nada, não sugiro nada.
- Ora, somos democracia, podemos escolher melhor os governantes.
- Isso não é solução, é parte do problema. Será que aqui não se consegue viver sem pensar em ação estatal pros problemas públicos? Puta merda! Cada vez que o povo pede ao estado solução, mais perde poder porque o estado cresce.
- Mas veja, você concorda comigo que a sociedade não é unida e precisa do estado pra agir nesse âmbito?
- Idealmente, sim.
- Governantes bons podem superar a desunião com políticas eficazes. Não podemos esperar que um povo analfabeto funcional tenha uma consciência clara dos problemas sociais e públicos. Leis melhores, educação de qualidade e redistribuição de renda podem transformar a realidade.
- Espera espera, Fernando: se uma sociedade depende do estado para resolver todos os seus problemas, e foca apenas em seus interesses privados, então não existe sociedade, e surge a questão de que se há realmente uma nação brasileira que compartilha um passado em comum e um projeto de futuro conjunto. Fico desesperado de perceber as pessoas acharem que apertar números numa caixinha eletrônica, sem possibilidade de auditoria, de quatro em quatro anos, e nunca mais pensar no assunto, resolverá magicamente algo. Tirililili! Não vai. Não vai por que as promessas de campanhas não vinculam os políticos. Como o eleitor pode exigir comprometimento deles? Pior: se o titular da soberania que é o povo não tem meios de coagir seus representantes, governo representativo é uma farsa. Se o sistema se fecha em si mesmo, como acontece no Brasil, a separação entre as pessoas e o estado fica mais nítida.
- As pessoas podem protestar.
- Sim, e se ainda os políticos não agirem?
Fernando ficou em silêncio. Bruno enxugou o suor da testa e retomou:
- Você não está errado. Talvez em outro lugar do mundo seja essa a via adequada e normal, mas aqui no Brasil não é. Perceba que quem se manifesta aos finais de semana, o cidadão sem ideologia, infenso à direita e à esquerda, não pode sim-plesmente continuar durante a semana, porque tem a família para sustentar. Só quem pode se manifestar todos os dias é a militância.
- Qual a solução, Bruno?
- Não sei. Poderia pelo menos ser feito plebiscito pra ver se um país do tamanho do Brasil é necessário. Dividir o espaço. Enquanto Brasília estiver longe dos seus colonos e escravos, tudo estará como está.
Fernando olhou no relógio, terminou sua cerveja e respondeu:
- Antes de irmos embora, quero acrescentar uma coisa. Se isso tudo o que você disse é verdade, então não há esperança de futuro melhor para o país. Mas penso que, ou você é o arauto da revolução e nesse caso duzentas milhões de pessoas são estúpidas por serem tão egoístas e covardemente passivas, ou elas acreditam no atual modelo e você quer impor uma concepção pessoal de mundo sobre todos os demais. Calma, não acho que a quantidade seja prova de verdade ou correção, mas nesses assuntos é um bom indicativo das preferências. É preciso fé no ser humano como agente do seu destino. Pode ser que você e eu não estejamos mais aqui pra julgar o longo processo existencial brasileiro através da sucessão legislativa, executiva e até mesmo judiciária; pode ser que o modelo esteja condenado, como também o que você propõe solucione ou apenas piore a situação; porém, as pessoas fazem escolhas, e se como você disse, viver em sociedade é aceitar os benefícios e prejuízos decorrentes do mutualismo, então seus pensamentos não seriam racionalizações para o seu desespero?
Dito isso, os dois amigos saíram tomar um ônibus num ponto próximo.
E é melhor eu ir também, cuidar das minhas empresas e dos favores que a burocracia me deve; se existir mais gente como aqueles dois, meus interesses estarão perigosamente ameaçados.
Maldito seja quem inventou os bares para as pessoas socializarem.