Rescisão Trabalhista
Um dia encontrei o Abel na saída da igreja.
- Fala, rapaz! – cumprimentei empolgado.
- Nossa! E aí, Dimas? – sorriu meu amigo.
- Tempo, hem? Nem conseguia aparecer mais aqui, de tanto trabalho.
- Ninguém pode esquecer Deus, você principalmente... Não somos nada sem Ele.
- Levanta a cabeça, ô. Que merda aconteceu?
- Ah, nem vou reclamar. Só vou atrasar você.
Puxei um cigarro do bolso e acendi.
- Não estou fazendo nada. Até sua casa você me conta tudo.
Devo minha vida a Abel. Ele foi a única pessoa que estendeu a mão quando mais precisei. Se precisasse fazer um camelo passar no buraco da agulha, eu faria por ele.
Meu amigo era um solteirão cuja vida consistia em trabalhar e ir à missa. Não prejudicaria um mosquito mesmo que esti-vesse sugando seu sangue. Há um mês enxotaram Abel do serviço, depois de dez anos como porteiro em um prédio, sem pagar direito algum.
- Puta que pariu! E como está se virando? – eu interrompi.
- Tinha um pouco de dinheiro guardado, mas vai acabar esse mês. Não sei o que fazer. Cortaram minha luz – lamentou Abel com as duas mãos no rosto.
- E disseram quando vão pagar? – perguntei parado ao lado do portão da casa dele.
- Não. Quase nem me atendem. E quando atenderam ofereceram um valor menor do que era devido, me disse o advogado que eu consultei. Para piorar parece que está pra quebrar a imobiliária que administra o prédio.
- Esqueça advogado, fórum... Nada disso funciona. Servem só pra arrancar dinheiro de pessoas como você. Quem ganha com isso é só juiz e meirinho vidas-mansas.
Abel perguntou desesperado:
- O que vou fazer, então?
- Quanto é que devem?
- Ah, esquece. Isso já acabou comigo....
- Quanto, porra?
- Oito mil.
- Deixa comigo. Vou trazer amanhã esse dinheiro.
Abel colocou a mão no meu ombro:
- Pelo amor, Dimas, não...
Ver injustiça é revoltante. Mas ver injustiça com alguém que é bom demais para viver nesse mundo prostituto, fazia eu sentir um ódio mais profundo que o de satanás à criação.
- Calma. Não vou, ok?
Abel agradeceu e entrou.
Na verdade, eu menti. Além de me colocar à disposição para qualquer coisa que meu amigo precisasse, é claro que faria pagarem os direitos dele.
No dia seguinte, bem cedo, encostei próximo do portão de entrada do prédio em que Abel trabalhava, vestido de Haddad fazendo malabares com bolas de cifrão. Sempre que alguém tocava o interfone, afinava a orelha para saber quem era. Um homem cujo volume era equivalente ao peso de um prédio se apresentou. Era minha chance.
Saquei a pistola e pulei para cima dele como um tigre pu-la em um búfalo, e encostei o cano gelado no pescoço dele.
- Vamos entrando, Sr. Gesney, por favor.
Como não contrataram outro porteiro ainda, não precisei fazer mais refém.
- Quem abriu o portão?
- O síndico – respondeu a bolota com as duas mãos para cima.
- Vai até à sala dele.
Gesney era o administrador indicado pela imobiliária. Eu conversaria com ele e o síndico na sala, civilizadamente, claro.
Ao entrarmos, o síndico pulou para trás da cadeira executiva. Chutei as costas do Gesney para que ele se acomodasse ao lado do outro.
- Então, bom dia, cavalheiros. Vocês perceberam que, como o Haddad, estou à procura de receita para fechar as contas. Tem muito passivo aberto nesse país, e apesar da inflação, não se encontra dinheiro em lugar algum. Não, isso não é roubo ou sequestro. Somos cavalheiros, não é? E cavalheiros obedecem à lei; não precisamos de violência. Ah, essa pistola é falsa, como tudo o que é prejudicial aos poderosos, querem ver?
Rosqueei o silenciador e atirei na cadeira. Puf.
- Opa! Me desculpem, eu não sabia que era realmente uma arma. Essas fake news. Parece que me enganaram ao vender essa pistola. Arma jamais resolve as coisas.
- Não mata a gente! Pode levar tudo. O que você quer? – perguntou o Gesney.
- Calma. Somos civilizados. Vivemos com a proteção das leis que protegem as pessoas e garante seus direitos... O que eu quero? Vejamos: quem de vocês paga as contas e salários do pessoal?
- O síndico me dá o dinheiro. Só cumpro ordens! – rápido respondeu Gesney.
- Claro, claro, afinal, as leis servem para ordenar. Ordem... O que seria do mundo sem ordem. Estou entendendo: o sín-dico entrega o dinheiro ao Gesney que só cumpre as ordens.
- Sim! – concordaram os dois.
- E o pagamento do porteiro Abel?
- Ah não, essa história de novo? Eu já paguei esse chato – reclamou o síndico.
Fixei os olhos naquele homem magro, com pouco cabelo em cima da orelha de rato; seu nariz parecia um bico de urubu velho.
- Que história? – perguntei.
- Eu já passei o dinheiro pro Gesney. O porteiro ficou resmungando um mês todo dia aqui.
Gesney empalideceu.
- Agora estou entendendo. É que o Abel me deve dinheiro e...
- Eu paguei ele, eu paguei! – interrompeu o hipopótamo agitado.
- Já pagou? Mas parece que ele não tem dinheiro, até a luz do desgraçado cortaram.
Os dois homens se olharam.
- Ordem... Sem ordem nada é possível. Vejam que apesar da nossa situação estranha, eu sou um entusiasta das leis. Não as conheço bem, mas sei que quem paga tem recibo. Parece que Abel está mentindo...
- Claro! – se empolgou Gesney. O filho da puta sentiu que me enganaria com sua voz sebosa. Entrei na onda dele.
- Sim, você diz a verdade. Se me mostrar o recibo, vou embora sem problema algum e ainda peço desculpas.
O síndico, aliviado, mandou o administrador pegar o recibo. Gesney abaixou os olhos, e colocou as mãos para trás.
Como a banha humana travou, atirei próximo a ele, que se mijou nas calças.
- Acho que me enganei, cavalheiros. Vocês não compartilham da minha admiração pelas leis. Vou perguntar uma vez: o Gesney pegou o dinheiro do Abel?
- Sim – respondeu a barriga de tambor velho. – Eu me apertei financeiramente e...
- Ah, claro, é justo. Compreensível. Nesse caso não há nada a se fazer além de processar, não é mesmo? Afinal, as leis existem para isso, para ninguém fazer justiça por conta própria.
Não responderam. Seus olhos não despregavam da arma.
- Então é isso – eu conclui. – Passem bem, cavalheiros, e desculpem o incômodo.
Segui para a porta, mas depois de um passo, virei rapidamente e atirei na cabeça do Gesney. O urubu velho se apertou mais contra a parede, como uma ratazana acuada, ao ver o elefante estrompando no chão.
- Mudança de planos. Sabe por que as armas são proibidas? Não é porque as pessoas são violentas; é porque elas resolvem rápido e sem burocracia as coisas. Você concordará comigo que depois de um mês, entrar com um processo, só seria perda de tempo e uma aventura sem garantia de êxito se vocês dois não tivessem dinheiro... E acho que não preciso sequer pedir para você transferir os direitos do Abel, não é?
O velho concordou com a cabeça e rapidamente digitou em um notebook que estava sobre a mesa. Conferi o saldo da minha conta.
- Não quero recibo. Tenho palavra.