Democracia
Entrando na farmácia, o rapaz pensou não existir diferença entre uma eleição e um carnaval. Próximo dali, vestidas igualmente, umas cinquenta pessoas faziam propaganda política e sequestravam a liberdade auditiva alheia com o jingle “vote sim pro progresso não ter fim”. Escondido do sol opressivo, na pastelaria ao lado, um mendigo encolhido sob um toldo esmolava com a cabeça entre os joelhos.
A farmácia engasgava de gente; o ar-condicionado não expelia o bafo viscoso do local. Se obter o remédio de dormir foi rápido para o rapaz, aguardar na vagarosa fila aumentou o cansaço ferrado em seu rosto macilento.
- Merda de calor!
E enquanto fantasiava o sol incinerando aqueles idiotas barulhentos que agitavam bandeirolas, percebeu o mendigo senta-do, menos humano do que bicho. Os foliões não percebem que a eleição, no fundo, quando considerada sem qualquer juízo de valor, é um meio de escolha do dominador pelo dominado? E mal completara a reflexão, ouviu do mendigo:
- Dá um trocado?
O rapaz não conteve a careta; de seus lábios quase saíram automaticamente um “não tenho”.
- Por que?
O calor aumentava e o ar era seco.
O mendigo levantou a cabeça suja, e olhou assombrado o rapaz, que insistiu na pergunta: - por quê?
A língua do mendigo pesava-lhe uma tonelada; pensava que as pessoas sabiam então dizer outras coisas além de “não te-nho”?
O rapaz refletia, irritado. Por que, por que deveria dar um trocado, se havia aquela súcia se esforçando por uma sociedade melhor, quando ele apenas saiu comprar remédio e voltar para o frescor de sua casa? Quem pariu Mateus que o embale.
Mas surpreso consigo mesmo por conversar com aquele dejeto social, quando seria melhor ter ignorado tudo, continuou ali esperando a resposta, que não se libertava da boca podre do outro.
O calor só piorava. O mendigo cheirava azedo, nem as moscas o rodeavam. No bolso o rapaz tilintava algumas moedas.
- Você vota? – perguntou o rapaz. E pensou: - que pergunta idiota...
- Não – balbuciou o mendigo.
- Aquelas pessoas ali querem eleger um novo prefeito justamente para tirar você da rua.
- Não, não... ‘tô bem, assim. Só quero um trocado, mesmo.
- Eles – apontou o rapaz a massa – não deram nada?
- Haha! Ninguém ali tinha trocado. Passei pedindo e me enxotaram rapidinho porque ‘tava atrapalhando. Acho que se pe-disse a bunda diriam que não tinham.
- Para aquelas pessoas, bunda e cabeça fazem a mesma coisa.
O mendigo sorriu banguelo.
Trocado ele tinha. Bastava colocar a mão no bolso, entregar ao mendigo e esquecer-se do barulho, do calor e da eleição. Um movimento apenas.
O som do autofalante continuava: “é verde, confirma, pra trabalho, saúde, moradia!”
- O que você acha dessa festa?
- Nada...
- Nada?
- Nada. Só quero meu trocado.
Por que, nada? Aquelas marionetes claramente usavam esse fodido para capitalizar politicamente, e mesmo assim ele não achava nada?
- E pra quê o trocado?
- ‘tô com fome.
- O pasteleiro não deu nada?
- Nada.
Dentro da pastelaria comiam, arrotavam e sorriam. Talvez peidassem também. Eram animais bem nutridos.
- E a prefeitura, não faz nada?
- Sei não. Dá comida, coberta, roupa; querem tirar eu da rua.
- Por que não sai?
- Por nada.
O rapaz olhou a pastelaria, o mendigo, a multidão; olhou também para aquele sol branco e desviou os olhos. Muito quente. Ele enfiou a mão no bolso e jogou uma moeda no colo do mendigo.
Partiu. Não esperou mais nada.