Pedalando por aí
“Pedalando por aí”
Sou biólogo de formação. Atleta por opção. E mecânico de bicicletas por paixão. Terminei o meu mestrado logo cedo. Competia muito em estradas, minhas fibras são longas, subia bem e nunca amarelei para nenhuma montanha. Cheguei a completar umas etapas da “Tour de France”, mas lá o negócio é inumano. Mas numa bela e enevoada manhã eu levei um tombo espetacular descendo o meu santuário, o Morro Feio. Quebrei o pulso, a clavícula, a cabeça do fêmur e a minha panturrilha esquerda rasgou em duas. Não consegui mais ser competitivo. Tudo bem. Agora faço o que sou melhor, conserto bicicletas.
Não me confundam com outro qualquer. Conheço as magrelas como a palma da minha calejada mão. Depois das cirurgias, meu punho ficou com um ângulo estranho. Mas ficou bom. Minha chavinha Philips alcança qualquer gretinha com mais facilidade do que qualquer um. Consigo montar e desmontar uma inteira em minutos. Limpo, escovo, engraxo, ajusto as marchas, passador, vejo o eixo, as rodas, sou cuidadoso. E eu ainda tenho uma habilidade que ninguém tem. Consigo saber onde o ciclista foi. Qual o lugar que ele pedalou. Aqui em Goiânia e arredores, nunca errei. E –essa é confidencial- eu sei direitinho como é a personalidade do sujeito. Em detalhes. A bicicleta entregue a mim, revela tudo.
Por exemplo, esse cara com as batatas imensas na perna, veio da Serra Dourada. O solo úmido o ano inteiro permite o crescimento da U.huntii, uma plantinha que dá florezinhas brancas, com uma espécie de lingüinha na borda inferior. Só existe lá. Vi na corrente. Ele é grande ciclista, mas judia da bike. Olha só como fica suja! Ocasionalmente eu converso e brinco com os rapazes, só para agitar.
- E aí, seu prego? Como foi lá em Piri?
- Uai, como ficou sabendo? Eu pedalei com uma galera de Brasília... Não é possível que o povo da lá já espalhou...
- Que você caiu perto da pedreira?
- Porra, não dá pra esconder nada de você, einh?
Jamais eu confessaria que o arranhado ao lado do banco e a marcas de quartzito são claras. Esteve lá. O pozinho sob o banco confirma: 90% de sílica, tranqüilo. Para confirmar dei uma checada no passador traseiro e ficou agarrado um pouco de bosta de urubu, ele foi ao alto da Serra. Na Várzea do Lobo. Lá tem ninho do Sarcorhampus papa, o urubu-rei.
- E aquele lote que você comprou no Empurrópolis?
- Foi grande, amigão. Cheguei de lá agora e como vi sua casa aberta, resolvi deixar hoje mesmo. Tem problema?
- Nenhum. Amanhã cedo eu dou uma olhada.
Tem sempre o apressadinho. Esse aí fala pelos cotovelos. Pedala muito, mas fala ainda mais. Quer saber mais de pedal do que eu... Imagina? Mas é sério, sempre faz as revisões devidas. Aí; a bicicleta dele, não estraga. A maioria das pessoas não leva a preciosa na segunda. Estão cansados demais e os afazeres ridículos da semana os assoberbam. Os melhores, trazem na terça. E os piores na quinta ou até mesmo na sexta. Como quase todos pedalam no sábado, entopem minha oficina bem próximo do fim de semana. Fico chateado porque as pistas diminuem muito. Então me fixo mais na personalidade do condutor.
Neste caso, Bonfinópolis foi sua escolha. A grande subida já apelidada por “empurrópolis”, somente os profissionais ascendem-na sem colocar o pé no chão. Lá no cotovelo, na última fase, tem um arbusto bem na margem. É batata! Fatalmente o mamão se esborracha ali. Pouco acostumado com o pedal de encaixe, vira muito o volante e ... pá! Ah, o arbusto é a Achyrocline satureoides, a macela do campo, a macelinha, a que tem aquele veludinho e a floração é agora em maio, pois vai de março a julho.
Outro dia eu quase não descobri. Mas a lasca de osso de boi pregada no garfo dianteiro, ao lado da suspensão foi proverbial. Eles estiveram passando na antiga ferrovia de Bonfinópolis inaugurada em 07/09/1950. Hoje abandonada. É um vão rasgado no meio da pedra. Perigoso. É numa parte onde cai muito animal e eles morrem ali. O problema é que logo depois do entroncamento, ainda passa o trem. E o condutor não avisa. Esse pessoal maluco que inventou a tal de corrida de aventura, vive explorando essas regiões inóspitas. São uns leões. Mas tenham dó!
Veja esse doutorzinho. Mais conhecido como a “vaca-louca” ou para os grandes amigos, o “asno indomável”. Ele gosta do que gosto. O Morro Feio. Desce em desabalada carreira, tanto faz o sentido horário como o anti-horário. As marcas de pedraria no pé-de-vela são sintomáticas. O homem é dos meus. Nem perguntei sobre a nova e extensa cicatriz que ele carrega no cotovelo esquerdo. A da coxa eu já conhecia. E a bicicletinha sofrida dele conta-me tudo. O pneu está com marcas muito abrasivas, foi pedalando da casa dele até lá. A corrente dele é um dicionário. Florzinhas de Vernonia rotundifolia, aquela com penacho, os famosos aquênios, que só o coração-de-negro tem. Fica na parte baixa do Morro Feio, na mata. Depois a Zeyera montana, a arapari, ou bolsinha de pastor, ou chapéu de frade, cada lugar tem um nome. Mas é aquela amarelinha que o boi não come, pois se comer morre de necrose hepática.
E a moda mais recente agora? Menina pedalando. De uns tempos para cá elas tem aparecido. Geralmente com os namorados. Elas chegam de cara amarrada. Meio que insatisfeitas. As bikes mais arranhadas pelo transporte do que pela trilha. Umas outras com o marido, tentando resgatar no mato a magia que perderam na cidade. Poucas permanecem girando. Quando o cabelo começa a desarrumar e as unhas encurtarem e quebrarem, separam-se as fêmeas das modistas. As fêmeas de verdade permanecem. Então, unem-se em bandos. Algazarra de felicidade. Falam alto. São gozadoras e apreciam as longas trilhas. Mulher geralmente tem muito endurance. Como caem menos e são menos atiradas nos down hills, os rastros são mais discretos.
Na minha última análise, tentei juntar várias peças. Primeiro o cascalho vermelho nas ranhuras dos pneus. Hidrolândia, estradão. Depois um capim alto, folhas longas, só dá no mato em torno do Morro Feio. Elas circundaram-no e depois foram... para onde? Formigas saúvas. Das vermelhonas. Alguns restos de fores de paineira. Muito vago, paineira dá pra todo lado... Aí encontrei no pedal de encaixe de uma delas a casca do Talauma ovata, o famoso araticum do brejo. Só no lago artificial dos delirantes castelos medievais do Hotel Fazenda “Idéia Molhada” encontra-se essa planta. Munido do meu microscópio eletrônico de análise fitossanitária achei o fungo Berkleanium talaumae, o mesmo que encontrei nas espécies plantadas no Paraná e que meu amigo Carvalho, pesquisou em 94. Fechei! Graças. Elas estão fortes, giraram mais de 70 kilômetros.
Então a minha rotina vai assim. Sem sobressaltos. Análises psicociclísticas de rastreamento. Até que então surgiu na minha vida o meu maior desafio. Que é necessário relatar com riqueza de detalhes para que todos possam saber da minha insana luta e pesquisa.
Ela chegou com sua bicicletinha de maneira humilde e calada. Não dava para saber a idade. Pela cara, uns vinte e cinco a trinta anos no máximo. Olhos fundos, nariz afilado, cabelo nos ombros. Belo –mas raro- sorriso. Não fazia as sobrancelhas, coisa que adoro, ao natural. Era séria. A voz firme, de comando, mas educada. Pediu-me uma revisão completa. Nunca eu a vi nas trilhas e muito menos nas rodinhas de pedal. Ciclista é bicho unido. Uma completa desconhecida. Como estava de shortinho curto, meio de selva, e um coturno, não pude evitar de reparar suas pernas. Fortes. Torneadas. Um mocotó respeitável. Seria ela de Minas? Pelo sotaque? Uma ciclista nova no pedaço e velhaca nas trilhas? Descartei. Não tinha pedal de encaixe e o modelo era novo, bem novinho. Era novata, uma presuntinha. Presunto é o que você carrega quando leva o novato, ele fica vermelho e passado da conta. Presuntinha maravilhosa.
Desmontei com cuidado de sempre. Gramíneas de morro. Provavelmente o Jet Park. Dentro da sua bolsinha de estrepe achei uma folha de bambu e um belíssimo exemplar de flor de Cybistax antisyphilitica, o ipê verde. Confirmei o lugar. Que mulher é essa que guarda consigo plantinhas de recordação? Apaixonei. Aí olhei elo por elo da sua corrente. Na grampola traseira ainda recolhi mato e lama bem úmidos. Ela nadou no rio e colocou sua bike bem perto dele. Uma sábia pessoa. Aproveitando tudo que a trilha oferece. Mexi em tudo quanto é lado. Imaginei-me pedalando com ela. Ensinando a amassar o pedal, a trocar as marchas. E todas as coisas perfeitas de Deus que colocou numa bicicleta.
Entretanto, quando fui ajustar o banco – ela era baixinha e apesar do quadro adequado e bem escolhido, alguém subira o canote – encontrei uma mancha amarelo-embranquecida. Manchas são nódoas, coisa fácil. A última vez que tive dificuldades foi com um varapau de quase dois metros que esteve na Bolívia. Mas a folha de coca na bolsa de reparos entregou sua procedência. A mancha dele era de “trucha a la plancha”, prato que comera no meio do caminho. Demorou um pouco, mas descobri.
Porém essa marca tinha um aspecto familiar, mas não se assemelhava a nada que já vira antes. Eu não poderia esperar até a quinta para questioná-la. Provavelmente era uma juíza de direito, ou procuradora, ou quem sabe, do Ministério Público. Uma moça honesta. Serena. Não me daria espaço. Eu, um mero mecânico de bikes. Então, apelei para o microscópico que ganhei da universidade. Antes cheirei, lambi, provei e sabia que o era, mas não lembrava. Afobado com a lâmina, depois de testar várias colorações para material orgânico vegetal e animal, deparei-me com a monumental surpresa. Era sêmen!
Sorri e ri. Tive ciúmes louco daquele felizardo que conseguiu juntar as melhores coisas da vida numa só. As plantas, o pedal e o amor. Mas então eu a respeitei mais do que nunca. Ela era especial e só eu sabia disso. Chegou no seu carrinho. Pensei que viria num jipe ou algo assim selvagem. Nada. Tudo normal. Num modelo que existem uns outros três iguais no mercado.
- Bom dia, José Cupim.
- Bom dia, doutora.
Ah, ela decorara meu nome. Como era educada e fina! Que lindo.
- Como foi a semana? Pronta pra outra pedalada?
- Foi boa, trabalhei muito. Vou sair no sábado.
Eu não resisti. E perguntei logo na bucha.
- Novamente no Jet Park? Vai bem lá no alto? Vai nadar de novo? Bonito o bambuzal, não é?
Com muita classe, sem nenhum risinho malicioso ou qualquer conotação secundária, respondeu:
- Engraçado, não vi absolutamente ninguém lá. Fui sozinha. Como soube? Só se a bicicleta lhe contou...
Eu fiquei branco, amarelo, estupefato. Ela descobrira o meu segredo de anos. Eu queria correr dali, ou abraçá-la fortemente com meus dedos de graxa e óleo. Mas como tímido que sou, baixei os olhos, segurando a lágrima e disse baixinho.
- Ah, sei lá. Vai ver fui eu mesmo que estava lá...
- Quem sabe um dia, né? Aí você me ensina a pedalar que eu lhe mostro o que sinto da Natureza.
Engoli seco. No outro dia voltei a treinar. Mal sabe ela que tocou no âmago de um verdadeiro mountain biker. Que sabe profundamente que se quem não se foder numa trilha, nunca vai estar tão próximo dos deuses como eu imagino que estaremos quando formos pedalando por aí.
JB Alencastro