O Peso Do Voo
Pedro não era um menino como os outros. Havia um brilho escuro nos olhos dele, não como o brilho infantil de curiosidade, mas algo mais profundo, quase febril, como alguém que já viu mais do que deveria. O telhado da casa era seu trampolim para o céu, e voar não era apenas um sonho infantil, era uma necessidade, uma missão secreta que ele repetia em sua mente nas noites em que acordava sobressaltado, suando frio. O voo era sua fuga, sua esperança silenciosa de escapar do que não podia ser consertado.
Antônio, o pai de Pedro, chegava sempre por volta das seis, e com ele vinha o cheiro de cigarro e de desinfetante barato – uma combinação tão precisa e previsível quanto os ponteiros de um relógio. Era um homem grande, com ombros largos e um olhar que não deixava espaço para perguntas. Seu mundo era feito de regras, e, para ele, o caos era o maior dos pecados. Antônio acreditava que a disciplina era o único caminho para manter Pedro no eixo, para evitar que o menino seguisse o mesmo caminho errático da mãe.
Quando a porta da frente se abriu com um rangido pesado, Pedro sentiu o ar se tornar mais denso. Seu coração começou a bater no ritmo apressado de uma melodia inquietante, e ele prendeu a respiração. As batidas firmes das botas de Antônio ecoavam pela casa como um juiz se aproximando do tribunal. Rita, irmã de Antônio, congelou no meio da sala com o pano de prato nas mãos, sabendo que o que estava por vir não seria bonito.
Pedro estava no quarto, mas espreitava atrás da porta entreaberta. Ele viu a sombra do pai entrar, longa e pesada, projetando-se no chão como um monstro. Antônio olhou para Rita e, com uma voz fria como uma lâmina recém-afiada, perguntou:
– O que foi que ele fez desta vez?
Rita tentou minimizar. Ela amava Pedro, mas sabia que não poderia protegê-lo por completo. Era o jeito de Antônio. Era a ordem natural das coisas.
– Ele estava no telhado de novo, tentando... voar – respondeu ela, quase em um sussurro, como se a própria palavra fosse absurda demais para ser pronunciada.
Antônio fechou os olhos por um momento, respirando fundo, como se precisasse se agarrar ao último fio de paciência que lhe restava. Então, ele avançou pelo corredor com passos firmes e abriu a porta do quarto de Pedro de um puxão.
– Você perdeu a cabeça, moleque?
Pedro tentou se encolher, mas não havia escapatória. Antônio o pegou pelo braço, e a força era tanta que o garoto achou que seu osso fosse quebrar.
– Quantas vezes eu vou ter que dizer que essa palhaçada tem que acabar? – gritou Antônio, as palavras saindo como um trovão.
E então veio o tapa. Não foi apenas uma palmada comum – foi uma sentença, um lembrete cruel de que a liberdade de Pedro não existia. A mão pesada de Antônio fez o rosto do garoto arder, e Pedro sentiu os olhos se encherem de lágrimas, mas ele não chorou. Não, ele não daria essa satisfação.
Rita, parada na porta, levou a mão à boca e deixou escapar um soluço. Ela tentou intervir, mas sabia que havia uma linha que não poderia cruzar. O mundo de Antônio era um lugar onde amor e medo se misturavam, onde a rigidez era a única forma de proteção que ele conhecia.
Pedro correu para o fundo da casa, com a toalha ainda presa ao pescoço como uma capa amassada. Ele se enfiou no armário de roupas sujas, o único lugar onde ninguém se importaria de procurá-lo. No escuro e no silêncio, ele ouviu os passos do pai se afastando, mas não muito. Antônio e Rita estavam conversando na sala.
– Ele não é como você, Antônio... ele tem imaginação.
– Imaginações levam as pessoas a cometerem erros – respondeu o pai, ríspido. – Foi isso que arruinou a mãe dele.
Pedro, encolhido no armário, ouviu aquilo como uma ofensa terrível. A menção à sua mãe era um tabu naquela casa. Ninguém falava dela. Ela era um fantasma que pairava entre as paredes, uma memória proibida que pesava sobre todos eles. E agora, ali, no escuro, Pedro entendeu algo terrível: ele também era parte daquele fantasma, uma lembrança ambulante do erro que Antônio tentava esquecer.
– Você acha que está fazendo isso por ele? – desafiou Rita, com a voz trêmula, mas decidida. – Você está quebrando o garoto.
– Eu estou salvando ele. – A voz de Antônio era firme, mas havia uma rachadura nela, como se ele não estivesse tão certo assim.
Por um momento, o silêncio na casa foi absoluto, pesado como chumbo. Pedro, ainda escondido, sentia o ar sumir de seus pulmões. Ele pensava na mãe e nas histórias que ela contava sobre liberdade e aventuras. Ele pensava em como ela sempre dizia que, um dia, ele aprenderia a voar.
E foi então que Pedro decidiu. Não, ele não desistiria. Voar era tudo o que ele tinha. Era a única coisa que fazia sentido. Naquele instante, entre o medo e a dor, Pedro jurou a si mesmo que voaria – nem que fosse a última coisa que fizesse.
Naquela noite, a casa ficou em silêncio. Antônio adormeceu no sofá, exausto de sua própria rigidez. Rita chorava baixinho no quarto. E Pedro, com o rosto e olhos inchados e a alma cheia de uma determinação sombria, amarrou de novo a toalha no pescoço.
Desta vez, ele não usaria apenas o telhado. Ele precisava de algo maior, algo que o levasse direto para o céu, para longe dali. Subiu na cadeira perto da janela e a abriu. O vento frio da noite bateu em seu rosto como um convite silencioso.
E, então, sem hesitar, Pedro pulou.
O impacto foi um estalo seco na noite, seguido por um silêncio mortal. Antônio acordou com o barulho e correu até a janela. Lá embaixo, Pedro estava deitado na grama, imóvel, os olhos abertos mirando o céu.
Rita chegou logo atrás e sufocou um grito. Antônio ficou parado por um momento, encarando o corpo do filho, sem reação. E foi ali, naquela noite fria, que ele finalmente entendeu... Pedro não queria fugir da vida. Ele só queria voar.
O vento soprou suavemente, balançando as árvores ao redor da casa. E, no meio daquele silêncio, Antônio jurou que, por mais alto que seu filho tivesse voado, ele jamais o alcançaria.
Era tarde demais.