POR PURO ACASO

Foi com indizível satisfação que Hilda recebeu o envelope com o timbre do consulado da França.

Incapaz de conter o tremor das mãos, leu por diversas vezes o cartão com a mensagem que dizia que ela havia sido aceita para o curso de especialização na língua francesa.

“O reitor da Sorbonne Université tem a grata satisfação de comunicar-lhe que a sua inscrição para a faculdade de letras desta universidade foi aceita e que a fim de cumprir as formalidades para sua admissão, V. Sa. Deverá se apresentar à secretaria da respectiva faculdade até a última semana do mês de agosto vindouro”.

Suas aulas começarão no primeiro dia útil de setembro de 1978.

Dr. Jean-Marie Delyon – Consul Geral.

Agora era correr para Delegacia da Polícia Federal e convencer o agente da necessidade do passaporte requerido dois meses antes e retirar o atestado de vacinas do Ministério da Saúde que eram os dois últimos documentos que faltavam para então marcar o embarque para a viagem pela Air France.

Precisava também ir até o Banco Francês e Brasileiro para saber como movimentar sua conta quando estivesse em Paris e como cambiar para Francos os saldos da conta corrente e da poupança amealhada nos últimos cinco anos.

Pela enésima vez leu o histórico escolar traduzido para o francês; a carta de recomendação do diretor da faculdade em que cursava o último ano do curso de línguas latinas, o roteiro e os ônibus ou metrô que deveria utilizar para chegar até a Sorbonne a partir do aeroporto Charles de Gaulle.

Tudo ocorrera conforme o combinado, até o voo chegou com meia hora de antecedência, nenhum problema com a bagagem ou sustos com as caras de poucos amigos do pessoal da imigração.

Sua companheira de quarto no alojamento para estudantes estrangeiros era uma polonesa que gostava de ouvir as histórias sobre o Brasil, mas pelos traumas decorrentes da ocupação soviética, raramente falava algo sobre sua terra natal.

O ano estava prestes a terminar e Paris se vestiu de luzes e cores para comemorar o natal de Jesus.

Natália Kowalski a companheira de quarto, que nascera no dia de natal, viajou para a Polônia, para comemorar o aniversário junto com a família.

A solidão nunca esteve tão difícil de suportar.

A saudade de casa, a falta do aconchego da família, tudo isso somado ao frio intenso das nevascas dos últimos dias, fez com que Hilda viesse até a loja dos correios numa das transversais da Av. Champs Élisées, bem no centro de Paris para falar com a sua mãe.

A ligação durou pouco tempo e somente serviu para aumentar a tristeza da solidão e deixar os olhos mais vermelhos.

Hilda procurou se distrair olhando as vitrines feericamente iluminadas, tomou chocolate quente na cafeteria com funcionários vestidos de ajudantes do papai-Noel que, sorridentes que indistintamente falavam para todos:

- Joyeux Noël et bonne année...

Mas nada disso foi capaz de lhe aquecer e Hilda resolveu que o melhor seria voltar para o alojamento na faculdade.

Lá, pelo menos, o fogo da lareira aqueceria os seus pés, uma vez que o coração estava tão gelado quanto aquele ponto de ônibus, aonde já se encontravam muitas pessoas que, talvez como ela, gostariam de estar junto aos parentes e não expostas ao vento cortante que fazia com que ela mantivesse os braços cruzados junto ao corpo e o mais próximo possível do casal a sua frente para servir de anteparo ao vento glacial.

A solidão faz com que as pessoas falem consigo o que estão pensando e Hilda, sem notar o seu volume de voz, disse em tom de lamento – Oh! Meu Deus, como eu queria estar na minha casa, longe desse frio, junto com mãinha...

O casal virou-se imediatamente e a mulher sorridente falou em bom português e com sotaque igual – Eita, binha! Você é baiana, de qual cidade você é?

E a triste solidão daquele natal inesquecível se transformou numa perfeita confraternização do povo acolhedor que jamais despreza um conterrâneo...