O PROCESSO
A audiência virtual transcorria em um clima de tensão mal disfarçada. Os advogados das partes, o juiz, o reclamante, o reclamado, o escrivão – todos estavam visivelmente desconfortáveis com as armadilhas tecnológicas dessas sessões remotas. Na tela, eles se viam forçados a resolver problemas “informáticos” com a agilidade de quem desmonta uma bomba-relógio, algo que, nos tempos pré-pandemia, não era sequer imaginado. Sempre havia o conveniente "depois eu resolvo", empurrando a responsabilidade para um futuro incerto – ou para o sobrinho entendido em parafernálias eletrônicas.
Nesses tempos estranhos, até o filho pirralho de nove anos poderia ser o salvador, se ao menos não estivesse na escola.
Enquanto a audiência seguia, o nervosismo aumentava, como uma bolha prestes a explodir, cheia de bits, RAMs, pixels e suor. Defesa e acusação desfiavam suas contestações, e o magistrado – outrora figura imponente – agora parecia perdido em um mar de configurações e botões. Ele, que costumava dominar a sala de audiência com sua arrogância, estava naquele momento circunspecto, pensativo, e até assustadoramente silencioso. O juiz, temido por sua postura narcisista, havia deixado as partes livres para falar, como se estivesse alheio ao próprio processo. Quem o conhecia poderia estranhar sua ausência de interrupções; quem não o conhecia – e ali, ninguém realmente o conhecia – mal notava o que estava fora do lugar.
A verdade é que aquele era o grande "debut" do meritíssimo no mundo virtual, e ele estava claramente à deriva. Entre uma tentativa de ajeitar os fones e mexer no microfone, o juiz franzia a testa, como se pudesse, por pura força de vontade, fazer a tecnologia funcionar. Seus suspiros ecoavam na sala digital, cheios de frustração e inconformismo. Seu assistente, sempre tão eficiente, havia se retirado após uma série de tosses e espirros, e sem ele, o juiz estava entregue à sua própria incapacidade.
Os advogados, por sua vez, apenas torciam para que aquilo acabasse logo. Estavam tão fora de seu elemento quanto o juiz, nervosos tanto pela audiência quanto pela estreia no formato virtual. Já o reclamante e o reclamado, esses... bem, irrelevantes.
Apesar da confusão, cada um tentava se apresentar com uma dignidade forçada, como se ainda restasse algum controle sobre a situação. Quando achavam que tinham sido chamados a se manifestar, falavam com falsa confiança, enquanto o juiz apenas assentia mecanicamente, como se concordasse com tudo. Frases fora de contexto passavam despercebidas, alimentadas pelos sorrisos amarelos do magistrado, que a essa altura já desistira de tentar manter qualquer ilusão de controle.
A audiência seguiu assim, num desfile de absurdos, até que todos começaram a se perguntar: quando, afinal, aquilo terminaria? Advogados, reclamante, reclamado – todos aguardavam ansiosamente que o juiz desligasse o vídeo, imaginando que esse seria o sinal de que a tortura digital havia chegado ao fim. Mas o sinal nunca veio.
Então, um som inesperado: a voz do meritíssimo, lá no fundo, comentando com alguém que lhe servia café:
"Ouvi foi nada dessa audiência."
O escrivão, arriscando-se, chamou o juiz:
"Excelência, o som do senhor apareceu agora. Mil desculpas, mas acho que ninguém o ouviu durante a audiência toda."
O juiz soltou uma gargalhada, acompanhado pelo escrivão, pela tia do café, pelos advogados, pelos irrelevantes reclamante e reclamado. Até um cão, lá fora, latiu, assustado com o barulho repentino.