Olhos de Malévola

"Le temps de l'amour" tocava em minha mente enquanto eu observava sua chegada, tão discreta quanto um furacão. Busquei sinônimos perfeitos para descrever seus cabelos, mas o mais próximo da verdade é que seus fios eram soturnos, enevoados, tétricos, absorvendo a luz ao redor, forçando-me a apertar os olhos para enxergá-la melhor.

Você vestia um vermelho vibrante, como a "Dama Rossa", mas a jaqueta de couro sobre o vestido criava um contraste inesperado, algo entre a elegância e a rebeldia de "Lisbeth Salander". Enquanto eu te observava, atento como "Rin Tin Tin", nossos olhares se cruzaram, e seus olhos me atingiram com a frieza calculada de Malévola. Instintivamente, retraí-me como um príncipe encantado diante de uma ameaça sutil.

Com o coração acelerado, pedi um vinho ao garçom, buscando refúgio na bebida. Seu sotaque infeliz arrancou-me momentaneamente de você. Quando te vi mexendo no celular com uma capa de silicone rosa e brilhante, ri por dentro. Nunca imaginaria que você, tão enigmática, usaria algo tão... inocente. Talvez fosse um artifício, uma forma de dissuadir os tolos que tentariam se aproximar.

Mas eu não era tão tolo assim, era?

O vinho chegou, seco, com algum nome francês que mal importava. O garçom, com uma postura pretensiosa, sugeriu que eu experimentasse algo mais suave. Quase sorri com o absurdo da sugestão. Um vinho doce era a última coisa que eu queria; já havia doçura suficiente no perigo implícito em sua presença.

Primeira taça.

Como "Sherlock Holmes", analisei todos os riscos de me aproximar. Sua mesa estava vazia, num restaurante lotado, refinado. Não era difícil imaginar que você estava esperando alguém. Uma ocasião especial, talvez? Afinal, tudo ao seu redor parecia ter essa aura.

Segunda taça.

O garçom te trouxe uma lata de Coca. Isso me pegou de surpresa. Por que uma mulher como você, imersa em todo aquele ambiente sofisticado, tomaria refrigerante? Eu ri internamente, talvez fosse só mais um detalhe que me escapava ao tentar decifrar o mistério que você era. Minha mente começou a criar teorias, mas só teria certeza se me aproximasse, se ouvisse sua história, como "Matilda" lendo mentes.

Terceira taça.

Você parecia entediada. Eu também estava. Era quase irônico que, após todo esse tempo compartilhando o mesmo espaço, uma sincronia começava a surgir. Será termos algo em comum além desse cenário que nos colocava juntos, naquele instante? Só havia uma forma de descobrir.

Quarta taça.

Decidi levantar. Atrapalhei-me no processo, como "Jack Torrance" com sua insanidade à flor da pele. Minha cabeça girava, mas não por conta do vinho — era você, a ideia de que, talvez, por uma noite, pudesse ser minha. A antecipação de te sentir perto, de talvez provar o gosto dos seus lábios, me enchia de uma excitação estranha. Imaginei que você teria o aroma de cereja.

Quinta taça.

Me levantei. Meu paletó cinza cheirava a vinho seco, e o perfume L'Homme que eu usava se misturava com o ambiente. Notei uma pequena mancha roxa na minha camisa laranja. Por um instante, hesitei. Será que você notaria? Seus olhos, afiados e calculadores como os de Malévola, certamente notariam.

Caminhei até você. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, o garçom apareceu como um fantasma, perguntando se eu estava bem. Sorri constrangido, apenas para disfarçar. Foi o suficiente para você me notar. Nossos olhares se cruzaram novamente, e desta vez, nem mesmo meu cabelo caindo sobre um dos olhos conseguiu esconder meu espanto.

Você sorriu, levemente, e levou a mão à nuca, em um gesto quase casual. Parecia sonolenta, e eu estava pronto para resolver isso de qualquer maneira. Mas, naquele exato momento, um homem chegou à sua mesa e se sentou diante de você, quebrando a ilusão que eu criara. Meu espanto se transformou em constrangimento, e em seguida, desolação. Não seria eu a pessoa que dormiria com você naquela noite. Nem em nenhuma outra.

— Algum problema? — você perguntou com naturalidade, enquanto o rapaz te cumprimentava com um beijo na bochecha.

Tentei pensar em algo inteligente para dizer, talvez pudesse fingir que era surdo, mudo, ou até francês.

Mas o que saiu foi um murmúrio:

— Estou procurando o garçom.

Ele estava ao meu lado e, como um velho amigo, me conduziu de volta à minha mesa, tirando-me da sua presença com discrição.

Sentado de novo, como "Michael Corleone" vendo o mundo ao seu redor ruir, observei de longe sua interação com o rapaz, que parecia uma mistura estranha de Sinatra e Elvis.

Droga. Eu havia lhe perdido para ele.

Campos Matheus
Enviado por Campos Matheus em 12/10/2024
Reeditado em 28/10/2024
Código do texto: T8172100
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