Certos homens não envelhecem
Outro dia, num desses encontros familiares, que normalmente acontecem ao final de cada ano, quando é feito de forma espontânea um balanço, um inventário do ano que termina, foi justamente numa dessas reuniões, em que estavam presentes o meu pai e um tio da parte materna, que ouvi um nome em que imediatamente me transportou a minha infância. Esse meu tio dizia que estivera uma semana antes na casa do Sr. Antonio Tomé, e que sua saúde estava tão frágil a ponto desse Sr. não reconhecê-lo prontamente. Meu pai lamentou o fato, e os dois entraram num assunto de datas a fim de estabelecer uma idade aproximada ao homem que dava sinais inequívocos do final da sua jornada. Enquanto eu, fui me encontrar pequeno, a caminho da casa de tal homem.
Nessa época morávamos numa cidade da grande São Paulo, meus familiares tinham deixado a vida rural, no interior do Paraná, alguns anos antes, fato semelhante tinha acontecido a esse grande amigo do meu avô materno, numa data mais recente. Esse reencontro, agora na “grande cidade”, era regado a visitas constantes, e funcionavam, para os adultos, como um modo de rememorar um passado vivido em comum, trocar idéias sobre as dificuldades da nova vida, ou simplesmente manter vivo um costume cada vez mais remoto na atual correria do nosso dia-a-dia, freqüentar a casa de um amigo querido sem que haja data ou motivo importante.
Eu deixei a vida no ambiente rural muito pequeno, quando os meus pais vieram para cidade eu tinha pouco mais de dois anos de idade, e minhas lembranças, dessa época, eram e são formadas por pequenos flashes, fragmentos que estão naquela fronteira tênue entre o real e a fantasia, e esses encontros, para mim, provocavam uma deliciosa nostalgia inconsciente.
A casa do Sr. Antonio Tomé não ficava no mesmo bairro que o nosso, e o caminho era feito a pé. Quando chagávamos lá, casinha muito simples, éramos sempre recebido por D. Gercina, que com um sorriso acolhedor anunciava lá do portão os visitantes ao marido. E lá vinha Sr. Antonio Tomé com sua voz grave e um riso largo, rosto vincado, com chapéu de feltro preto na cabeça e um par de botas de borracha no pé. A festa era tanta que os mais desavisados juravam estar presenciando um reencontro depois de muitos anos. Em seguida, entrávamos naquele casebre de uma beleza que nunca mais encontrei comparação. Na sala, enquanto os adultos iam se acomodando, os meus olhos curiosos passeavam pelas paredes, forradas de imagens de santos, dando ao lugar a aura de um templo aconchegante, daqueles que se fosse eu o Deus, era exatamente assim que o gostaria que arrumassem meu altar. Depois de todos sentados, D. Gercina sumia do alcance de nossas vistas e os homens desatavam naquelas conversas primeiras, como é que estavam, como é que não estavam, assuntos que eu não gostava muito, mas eu sabia, era como um ritual, o melhor estava por vir. Dito e feito, a certa altura, o meu avô, sempre o meu avô, dava uma guinada na conversa e perguntava com a maior cara de felicidade que presenciei por várias vezes. – E a onça de Bela Vista Sr. Antonio Tomé? O homem, com seu cigarro de fumo de corda, feito artesanalmente enquanto conversava, do qual o cheiro ficou impregnado na minha memória e quando o sinto me remete a esse momento, ria grande... Eu, no meu canto, sabia muito bem que aquela era a senha para melhor parte da nossa visita, Sr. Antonio Tomé baforava mais uma vez o cigarro e respondia, com os olhos apertados pela fumaça e com um riso de pura cumplicidade para com o meu avô: -Tu ainda lembra disso Sr. Belarmino? E como numa espécie de slogan de um programa que ia começar, recontava aquele causo curto e tão conhecido, com uma impostação de voz aliada ao seu sotaque alagoano, que mesmo depois de tantos anos nas terras sul jamais o perdeu, e nós, embora conhecêssemos cada vírgula ficávamos magnetizados com suas palavras:
- Sr. Belarmino lá em Bela Vista tem uma onça que come três, quatro bois por semana. O fazendeiro, Sr. Belarmino, dá um milhão de cruzeiro pra quem matar essa onça. E o couro também, viu sô! Vamos lá ganhar esse dinheiro Sr. Belarmino?
As gargalhadas tomavam conta da pequena sala com aparência de templo, e estava inaugurada a tarde de deliciosos causos. A certa altura, D. Gercina reaparecia com um cafezinho fresco, que até hoje figura entre os mais gostosos que já tomei. Servido num velho jogo de xícaras de ágata na cor oliva, já descascados por anos de uso. O segredo dessa delícia era o material usado, café remanescente da última colheita antes da mudança, moído num moinho manual pouco antes da coada, aliado ao esmero daquela mulher franzina e de voz delicada e com rosto de santa.
O tempo passou, nos afastamos pelas circunstâncias da vida, mas diante dessa lembrança repentina, percebo que aquele homem, de chapéu de feltro preto e botas de borracha com sotaque alagoano e o rosto vincado e seu inseparável cigarro de palha, nunca envelheceu, na minha memória não...