CHOQUE DE REALIDADE
- Ué, você não avisou que só voltaria dentro de um ano? Se não me engano, eu fui lhe levar na rodoviária na quarta-feira de cinzas e hoje é dia 20 de novembro. Quer dizer que de fevereiro para cá só se passaram nove meses. Exatamente o tempo de uma gestação...
- Pois é. Pode considerar que nasceu um novo homem. Sem os sonhos daquele que você viu partir. Bastante calejado pela realidade e descrente de que algum dia haja a solução para essa miséria toda.
- Mas o que foi que aconteceu para você desistir? Não estava tudo planejado, inclusive as alternativas caso alguma coisa não saísse conforme o modelo?
- É. Estava. Mas o mais importante, que era a aceitação das alterações propostas, falhou diante da realidade instalada há séculos.
- Mas por que falhou? Você não fez a capacitação do pessoal?
- Deixe eu acabar de chegar, tomar um banho, comer qualquer coisa e me preparar para ir embora para os Estados Unidos, para ficar bem longe de tudo aqui.
Quando eu cheguei na rodoviária, o técnico agrícola estava me esperando. Era um jovem recém-formado, tão idealista e iludido com a realidade quanto eu. Mostrei para ele o plano de ação que foi acompanhado com entusiasmo.
Estava começando o período das chuvas e a ocasião não poderia ser melhor. No dia da feira, nós fomos no mercado e convocamos uma reunião com os produtores rurais. A reunião foi dentro da capela que era o único lugar com assento para todos. Expusemos as ideias de implantar culturas permanentes adaptadas ao clima além da agricultura de subsistência, com irrigação planejada, análise de solo, adubação, o diacho.
O pessoal acompanhou a conversa com cara de desconfiança e os donos das melhores terras, que são quem verdadeiramente tem lucros com as atividades, nos últimos lugares acompanhando nossa apresentação com cara de poucos amigos.
Mas quem é idealista, não se acovarda com as primeiras dificuldades. Na semana seguinte conversamos com os moradores que faltaram, fizemos os desenhos no pó do chão para que eles entendessem o passo-a-passo das alterações, mas sempre no final de cada uma dessas conversas, geralmente um idoso, chegava junto e comentava que o coronel não ia permitir que a gente fizesse as coisas que estávamos prometendo.
Montamos o campo experimental e no segundo mês já deu para colher as primeiras plantas. Fizemos a cerca, mas do dia para a noite a cerca desapareceu e as plantas foram comidas pelo gado faminto. Tentamos as espécies permanentes. Amanheceram arrancadas. Na noite da festa de Santo Antônio, o rapaz que morava comigo desapareceu sem que ninguém tivesse notícias dele. Veio aparecer alguns dias depois, todo rasgado, com queimaduras de cigarros pelo corpo e visivelmente surrado. Fui na delegacia dar parte. O delegado perguntou se eu tinha provas de que fora surra ou teria sido apenas queda de lombo de animal chucro. Tivemos que dar o caso por encerrado e continuamos com os experimentos. O prefeito disse que o trator estava quebrado e por isso não poderia emprestar. Tivemos que preparar o terreno com enxada e a maior parte dos canos da irrigação desapareceram. Tivemos que fazer a irrigação com baldes e as plantas se desenvolveram como nós havíamos planejado.
Quando foi antes de ontem, eu estava na banca da feira explicando como seria o próximo plantio usando a palha depois da colheita quando apareceu um homem vestido com terno branco seguido por uns cabras mal-encarados. Sem rodeios ele me disse:
- Escute aqui, mocinho. Eu sou o herdeiro da fazenda que sustenta a vida desse pessoal faz mais de 200 anos. Esse seu negócio de fazer todo mundo ficar rico que nem eu, está prejudicando meus negócios e eu não vou aceitar. Se você não quiser que um acidente ou qualquer coisa assim lhe aconteça, acho melhor você ir embora, porque não se deve mexer naquilo que está organizado e que sempre deu certo, né não?
- Aí, mesmo morrendo de medo, eu disse a ele - É, eu acho que o senhor tem razão, mas olhe, enquanto eu estiver por aqui, é melhor não acontecer nenhum acidente comigo não, viu? porque tem uns meninos, meus parentes, sabe? Que são muito buliçosos e de vez em quando fazem umas estripulias que dá muita dor de cabeça em quem fez alguma coisa, por menor que seja, mas que eles não gostaram. Eu até já conversei com eles sobre as roças que foram comidas pelos animais soltos, pelas mudas das árvores que foram arrancadas, da cerca que pegou fogo sem ninguém saber o motivo... eles queriam vir me buscar, mas eu disse que vou para lá amanhã e vamos ver se vale a pena voltar...
- Bom. Pelo visto a realidade é maior que o sonho.