Cinquenta KM

Seu Juju entrou na modesta academia da cidadezinha de Goytacaz, preenchendo-a com o seu tradicional bom humor matutino, mesmo sendo uma segunda-feira. Cumprimentou animadamente Manuela, a recepcionista e professora do turno; sua disposição era tamanha que a contagiou.

— Bom dia, seu Juju! Quero ver o senhor ir embora só depois de empapar de suor essa camisa.

— Pode deixar, professora! Você vai ficar orgulhosa de mim hoje. Vou queimar a gordura do churrasco de ontem.

— Quero só ver! Espero que tenha valido a pena, viu?!

— Valeu, sim, professora! Só de ver a família reunida dá uma paz no coração.

Ele caminhou calmamente, saudando cada pessoa que lhe desse abertura suficiente para isso. Demoraram-se alguns minutos, comentando sobre as últimas partidas de futebol, gargalhando alto para toda a academia ou bradando sobre o mais novo escândalo de corrupção do novo governo.

Enfim, seu Juju chegou à bicicleta ergométrica. Segurando no guidão, alongou os músculos das coxas e das panturrilhas. Então, subiu no aparelho, o objetivo do dia já em mente: cinquenta quilômetros de pedalada. A confiança o fez sorrir. Chegaria em casa, pronto para brincar com Marialva:

— Aí amor, já posso ir lá em Barreirinhas, comprar aquele queijo do sítio do Jonas que você gosta, e voltar sem gastar um pingo de gasolina.

Os dois primeiros quilômetros eram apenas de aquecimento; bicicleta sem nenhuma carga, numa velocidade confortável. Geralmente, seu Juju aproveitava esse tempo para assistir à TV que a dona da academia tanto se gabou de comprar. Como ela esqueceu de assinar TV a cabo, (ou talvez tenha investido demais no aparelho e ignorado a variedade de canais esportivos) restava para o seu Juju acompanhar os programas matinais, que ensinavam a fazer comida e falavam banalidades.

Mas às vezes, ele gostava de ignorar a TV e se focar nas pessoas da academia. Ficava assistindo como num filme, analisando os personagens e especulando sobre suas vidas, relembrando e associando a cara às fofocas que a esposa compartilhava. Por exemplo, Natinha estava lá perto das barras dos fortões, esperando alguém se aproximar para ela pedir ajuda e, quem sabe, até jogar um verde. Atirada igual à mãe, dona Valéria.

Dentre todos os frequentadores da academia, Fernando era o seu favorito. Hoje, ele chegou pontualmente às 9h da manhã. De acordo com sua esposa, o olhar do marido chegava a brilhar quando via Fernando.

— Se eu não te conhecesse, diria até que é amor.

Seu Justiniano jamais comentou, conhecedor da opinião da esposa e, acima de tudo, conhecedor das regras da paz de um matrimônio; evite sempre falar algo que sua mulher deteste ouvir, por mais verdadeiro e correto que você possa estar. Talvez, se tivesse guardado mais as coisas para si, ainda estaria no primeiro casamento.

O brilho no olhar podia até parecer com o de amor para qualquer que o visse, mas, na verdade, era de inveja. E de orgulho também.

Fernando era o filho que todo pai gostaria de ter, de acordo com seu Juju. O próprio disse para Fernando, após alguns minutos de conversa depois de um dia qualquer. Claro que um elogio desse não era forjado do dia para a noite; Justiniano observou muito o jovem. E conversou bastante também e, em todas as conversas, Justiniano percebeu a coerência dele. Era um homem de princípios. Policial militar, estudioso, buscava uma nova formação acadêmica para melhorar de vida.

Sem contar que Fernando era um homem arrumado; não era um fortão de academia, mas cuidava bastante do corpo. Não tinha tatuagem, cortava o cabelo discreta e regularmente. Vestia-se simples, sem querer aparecer. Sem mencionar que fazia sucesso com as mulheres. E, como Seu Juju gostava de destacar, fazia sucesso com as mulheres corretas.

Havia percorrido cinco quilômetros e seu Juju permitiu-se tomar uma água, diminuindo o ritmo. Sentia o suor escorrer pela testa. O ritmo estava um pouquinho mais intenso do que deveria se ele quisesse percorrer sua meta. Na sua idade, sabia que devia utilizar bem de suas energias. Sentou-se ereto, concentrando-se em controlar o pedalar.

Fernando estava de costas para ele, não percebendo que Justiniano o encarava. Distraído por seu objetivo, a expressão bem humorada do senhor de quase sessenta anos se desfez por um instante, dando lugar a um reflexo do peso de uma vida.

Fernando bem podia ser filho dele. Tanto fisicamente quanto em essência. Pele morena, nariz achatado, lábios grossos, cabelos crespos. Mas ele não era. E essas quatro palavras pesavam muitíssimo em seu Juju.

O senhor puxou o celular de seu bolso, desbloqueou, entrando numa rede social. Relembrou os ensinamentos da esposa, mais habilidosa com aquele troço do que ele. Tocou na lupa, digitou o nome do filho devagar e bateu na barrinha do perfil com veemência.

A semelhança entre o filho biológico e o imaginado era óbvia demais para não ser notada; ambos tinham um pouco mais de 1,80 de altura. Morenos, de cabelo preto e olhos castanho-escuros. Seu filho utilizava uma barba espessa, porém ajustada pelo barbeiro, enquanto Fernando possuía uma entrada natural nos lados da cabeça. Os lábios de ambos eram um tanto carnudos, assim como o de Seu Juju. Fernando, porém, possuía um nariz mais fino que Cristiano e Justiniano, puxando mais para o lado da primeira esposa, Ana (se, claro, fosse filho do mesmo sangue de Juju e Ana).

Fazia tempo que não fuxicava o perfil do filho. Gostava de fazer escondido, longe da esposa e de suas filhas, Beatriz e Rebeca. Sempre sentia um misto difícil de emoções, que o deixava temporariamente abalado. Um aperto no peito e na garganta surgia. Gole nenhum de água nesse mundo parecia ser capaz de desatar esse nó. A preocupação das mulheres de sua vida tornava o assunto ainda mais doloroso do que já era. Resistia aos incentivos delas de retomar o contato.

— Ele que fugiu, ele que tenha a decência de retomar o contato! — Ele costumava vociferar, um tanto amargurado.

As fotos e os vídeos eram perfeitos; via um homem bonito, discreto, noivo de uma mulher belíssima e elegante. Cristiano já havia percorrido mais que o pai poderia ter sonhado; conheceu pedacinhos diferentes do mundo e do próprio Brasil.

As conversas, desde que o filho saiu de Goytacaz, eram raras. Ambos tinham pouca paciência para falar, embora Justiniano sabia, lá, no fundo de si, que ambos tinham muito o que ouvir. Dias como o de hoje, véspera de aniversário, a saudade de Cristiano escorria pelo corpo de seu Juju, em tons salgados de repugnância e remorso.

Então, pouco depois do décimo oitavo quilômetro, seu Juju deixou de ler os textos, artigos acadêmicos que o filho publicava, para vê-lo falá-los, numa espécie de conversa tida depois de um almoço de domingo. Eram palavras de um homem inteligente, em contato com o mundo, muito bem articulado para pessoas que queriam ouvi-lo, destemido para quem quisesse apenas discordar de Cristina.

Bastava um exercício simples de imaginação que Cristiano era um filho mais perfeito que Fernando.

O problema de Cristiano e Justiniano estava lá na tal da bio. Formado em História, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Que pai teria vergonha disso? Doutor desde 2014? Inteligente e disciplinado. Trabalha como professor de História Política e Social do Brasil? Trabalho honrado que permite sustentar a família com sobras e privilégios?

A questão de culpa de Justiniano vinha por último. Uma bandeira, que destruía tudo isso. Três faixas que arrasaram cada membro da primeira família de Justiniano; a rosa em cima, o roxo no meio e o azul embaixo. Bissexual.

A confusão que isso trazia para o pai tinha reflexos até hoje. Justiniano bloqueou o celular, respirando fundo, concentrando-se para reencontrar o ritmo do pedal. Estava um pouco mais intenso do que antes, mas, bom, alguma hora ele tinha que se esforçar. Sim, sentia dor, mas era preciso persistir. Que fosse agora então.

Justiniano aumentou seu ritmo, como quem fugia vigorosamente de seu caçador mais antigo e sedento. As memórias de mágoa, raiva, frustração e decepção, estavam tão impregnadas dentro de si que causavam dor em seu coração acelerado.

Não aceitar Cristiano arruinou o seu relacionamento com o filho, com a ex-esposa (que assim que percebeu, mudou-se para perto da cria) e, às vezes, pensava envergonhado, consigo mesmo. O nó em sua garganta se desfez com um nó e um pigarreio alto; não se arrependia do novo casamento e das filhas fruto do relacionamento. Afinal, de certa forma, pensavam como o próprio Seu Juju. Ainda assim, era um desejo secreto de Seu Juju ter aquele churrasco com os seus filhos reunidos: Cristiano, Rebeca e Beatriz.

Isso tudo não aconteceu pela noite que Justiniano conheceu esse lado estranho do filho.

Na semana anterior, havia acontecido o tradicional festival da região. Todo ano, a juventude da cidadezinha se encontrava para festejar. Justiniano lembrava com gostosas saudades de seu tempo frequentador dessas festas.

Levou Cristiano e mais alguns amigos para o local. Contou as histórias que viveu no Festival, passando o bastão para os quatro. Os jovens já amontoavam-se nas barraquinhas, quando os colegas de escola de Cristiano saíam do carro. O filho já estava saindo quando foi impedido gentilmente pelo pai, que o segurou pelo ombro:

— Lembre-se, não faça nada que eu não faria. — Justiniano piscou para o filho com um olho, rindo-se.

Cristiano respondeu com um:

— Pode deixar, pai. Te amo.

Justiniano sorriu, assentindo com a cabeça. Imaginava que o filho, até então, sua réplica, faria exatamente o que fez quando era jovem. Misturaria cachaça com as bebidas não alcoólicas vendidas pelo pessoal. Xavecaria as moças e, quem sabe, descolasse um beijo aqui e outro acolá. Dançaria e faria graça com os amigos. Até mesmo sairia no soco com alguém que possuíam desavenças.

E por uma semana depois do festival, seu Juju, dono da quitanda mais completa da cidade, passou completamente alheio aos acontecimentos. Trabalhador, demorou a perceber que algumas pessoas agiam estranhas. Como a dona Valéria, falsa beata. Toda terça e sexta ela passava na lojinha, sempre deixando uns trocados com fofoca. Naquela semana, buscou outra quitanda e, quando Justiniano a cumprimentou na rua, após uma missa, Valéria o ignorou como se o comerciante fosse um pecador. Logo dona Valéria, que vez ou outra dava suas escapadas.

Sem contar a discussão que teve com Camilo, seu rival no carteado de todo dia. Viviam apostando garrafa de cerveja para la e para cá. A regra era clara: você não podia ser pego roubando. Mas roubar podia sim. E mesmo quando era pego na trapaça, era só uma gritaria boba, nada importante. Mas naquela quinta-feira, quando Camilo flagrou Justiniano com uma carta a mais (logo a mais poderosa), não pestanejou. Soltou na lata:

— Bem que se vê que a fruta não cai longe da árvore. — Após uma confusa troca de empurrões, Camilo fez menção de completar: — Na verdade, frutinha.

“Frutinha” desencadeou uma reação que, no grupo de amigos de Justiniano, era incompreensível. Era só uma piadinha, nada justificava o dono da mercearia voar sobre a mesa para acertar um soco em Camilo. Coisa que entra em ouvido e sai no outro.

Exceto se, bem, Cristiano fosse… Mas não podia ser, né? Seu Juju matutava enquanto segurava o saco de gelo em sua mão dolorida. Não, uai! Seu filho não! Ele já tinha namorado uma moça. Até a linguaruda da Dona Valéria disse que viu Cristiano e Patrícia aos beijos na frente da Igreja, prestes a cometer o pecado capital na frente da Casa do Senhor. Que tipo de invertido se atraca com uma mulher na frente da igrejinha de uma cidade pequena como Goytacaz?

A voz ardilosa de Camilo marcou presença mais uma vez na mente de Justiniano: exceto caso ele esteja extremamente desesperado para mostrar que não é invertido, não é mesmo?

Seu Justiniano, magoado por uma história que apenas insinuaram para ele, ruminou aquilo impaciente pela resposta. Queria tanto saber os detalhes. Não era possível.

Para quem desejava compreender como o filho havia caído na boca do povo daquela maneira, Juju não se lembrava como tudo se desenrolou. Tinha em mente que certos vespeiros são melhores pendurados na árvore. Confrontou Cristiano, certo de que era apenas falatório sem pé nem cabeça do povo

— Por que não posso beijar os dois? — A intransigência do filho o desafiou, exausto de se esconder, de ser sabatinado por todo mundo que o perguntou o que aconteceu na festa. A única resposta para tamanho desaforo foi um tapa. Mão espalmada, a força diretamente do âmago e do ego de um pai desrespeitado.

A frase resistia à teimosia mental, ecoando pelo passar dos anos, reverberando com a força de uma martelada no peito. Foi o início do fim de sua primeira família. Ana tomou as dores do filho. Justiniano fincou posição; não podia aceitar Cristiano. Como ele ficaria desmoralizado perante a cidade, aos amigos, aos clientes?

Justiniano saiu da academia devagarinho, despedindo-se das pessoas com um tchau econômico e um até logo protocolar, enquanto digitava cuidadosamente um comentário na postagem mais recente do filho. Afinal, fazia tempo que não o via e, por mais perfeito que fosse o perfil do professor doutor Cristiano e dissonante do filho que se revelou anos atrás, seu Juju sentia falta do primogênito. Fernando não era, nem que pretendesse, sangue de seu próprio sangue.

O corpo esfriou rapidamente, aumentando a costumeira dificuldade em vencer a ladeira até a sua casa. Talvez tivesse exagerado na bicicleta. Bem, cochilaria o sono dos justos logo depois do almoço.

Saboreou cada passo esforçado até a sua casa com o masculino sabor de objetivo cumprido, apesar dos pesares. Justiniano já imaginava como iria se gabar para a esposa. Pedalou mais de 50 quilômetros, mesmo com dor e cansaço. E Cristiano, seu filho, apesar de ser o que é, teve sucesso na vida.

(…)

Após anos distantes, o falecido assombrava Cristiano, quase homem feito; noivo, doutor formado, de postura importante. Não lembrava em nada o jovem choroso e exilado que a cidadezinha viu partir.

Quando chegou a despedida, a revolta juvenil abafada pelo passar dos tempos retornou; as grosserias proferidas pela voz brutal e alcoolizada, bem como as agressões certeiras das mãos calejadas do pai, reabriram cicatrizes antigas.

Estava pronto para regurgitar o ressentimento acumulado, até perceber, com muita dor, as lágrimas sinceras dos demais presentes. Entendeu que Justiniano, ou Seu Juju, havia sido um pai para muitos, menos para Cristiano.

Givago Domingues Thimoti
Enviado por Givago Domingues Thimoti em 07/10/2024
Código do texto: T8168202
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.