A dentadura.

17h30 de uma sexta-feira, seu Antenor mal chegou ao terminal de ônibus, no centro da cidade, nem teve tempo de descansar e imediatamente recebeu ordem do despachante para fazer a viagem de retorno; sua única exigência foi beber uma xícara de café bem quente; satisfeito avaliou a fileira de passageiros na calçada e caminhou para retomar a direção do coletivo.

Dona Cacilda, primeira da fila, sofria de cansaço depois de um dia de trabalho exaustivo, e esperar em pé, por mais de meia hora, até o ônibus chegar e sair, só piorava o seu tormento; ela não pensava em outra coisa a não ser, tirar uma pestana, já que seu destino era o ponto final da linha. O motorista entrou no carro, ela subiu atrás e sentou-se num banco independente, de frente para a porta dianteira, o único, sem ninguém ao seu lado para lhe incomodar. Ajeitou-se na cadeira, apoiou a cabeça no vidro da janela fechada e cerrou os olhos a espera do soninho gostoso.

Seu Rodolfo, que escolheu assento no corredor no primeiro rol de poltronas atrás da dona Cacilda, porque encontrou um camelô de manhã cedo oferecendo anchova num preço camarada, comprou um quilo e meio do peixe quase na subida da estação onde pegou o trem para o centro da cidade. Esqueceu-se do embrulho no fundo da sacola, e agora, no seu retorno para casa, ajeitou a mochila sobre o assoalho do veículo entre as suas pernas e cruzou os braços.

Com todos acomodados no ônibus lotado, seu Antenor girou a chave na ignição, o ronco do motor fez a galera espremida, do meio para frente do carro, se manifestar num coro de vozes graves: - Vão bora, motorista, acelera!

E outra turma aglomerada na traseira acompanhou com idêntico entusiasmo: - Demorou piloto, vamo que vamo!

Seu Antenor, bem humorado, respondeu para si mesmo em baixo tom: - Só se for agora!

Mas bastou manobrar para sair com o carro, de cara foi possível perceber o trânsito engarrafado, e só depois de 15min, se não mais, arrastando-se pelo caminho ele conseguiu entrar na avenida principal, distância que normalmente percorre em menos de cinco minutos, e no primeiro ponto de ônibus à frente parou para pegar dois passageiros.

O pessoal reprovou esta sua ação e fez coro novamente: - Para não motorista, vai embora!

Por não ter o seu pedido acatado, o grupo ficou por lá, reclamando e falando o que não devia.

Seu Antenor entendeu que precisaria ter muita paciência para aguentar a pressão sem sofrer estresse. Experiente, sabia que toda vez que tivesse de pegar algum passageiro no caminho, a baderna seria a mesma.

Dona Gorete, uma senhorinha nos seus setenta anos, não se sentia bem, por certo comera alguma coisa que lhe deixou o estômago embrulhado; ansiosa de voltar para casa, há horas que esperava a condução, até que viu seu ônibus se aproximar e fez sinal, temendo que o motorista a ignorasse por estar sozinha no ponto e não pagar passagem.

Seu Antenor, atento, diminuiu a velocidade sob-revolta dos que viajavam literalmente espremidos e amassados dentro do coletivo e parou para pegar mais esta passageira. Todos esbravejaram com gana de moerem o motorista na pancada: - Pô!, piloto, num para, não, cara! Você não consegue enxergar que o ônibus está lotado!

Com a colaboração dos que estavam próximos da escada, dona Gorete conseguiu subir os degraus e se acomodar em pé, colada à cadeira especial, justamente aquela onde a dona Cacilda tirava a sua soneca. Por sentir-se mal de verdade, ela não fez cerimônia e tocou de leve no braço da que estava sentada. A mulher, bem mais jovem, abriu os olhos. A senhorinha falou com educação: - Querida, esta poltrona é especial para idosos, está escrito na placa logo acima da sua cabeça, você permitiria que eu me sentasse? Acredite, não estou passando bem.

Apesar da sua fadiga a mulher acatou a solicitação imediatamente, pois reconhecia o direito da outra, e trocaram de lugar as duas. Sentada, com náusea e carente de ar puro, aflita dona Gorete abriu a janela. Nesta hora, o motorista guiava num trecho livre da estrada em velocidade moderada, suficiente para fazer o vento circular mais forte dentro do ônibus; por sua vez, seu Rodolfo se lembrou de abrir a mochila para pegar algo dentro, foi então que um forte cheiro de peixe estragado exalou e espalhou-se pelo ambiente. Ao sentir o miasma a idosa não conteve a ânsia de vômito, rapidamente pôs a boca para fora da janela e as violentas contrações se encarregaram de expulsar todo o conteúdo do seu estomago, que saiu feito lavas de vulcão, verdadeira calamidade. Num golpe de azar a prótese dentária da pobre senhora, infelizmente, escapuliu da sua boca levada pelo regurgitamento; por sinal, as duas, superior e inferior.

Os passageiros reclamavam do mau cheiro quando a idosa, coitada, começou a gritar: - Pare o ônibus, pare o ônibus... Sem conhecer o motivo da solicitação, a galera fez coro forte: - Para não motorista, para não!

Seu Antenor, entre a cruz e a espada, ainda avançou um pedaço antes de interromper a corrida; parado o carro, virou-se na cadeira e, de frente para a passageira, perguntou: - Qual é o seu problema?

A idosa limpava a boca com uma pequenina toalha que ela própria tirou da sua bolsa, encarou o motorista e com ligeiro sotaque, pela falta da dentadura, disse a ele: - Moço, eu sofri ânsia de vômito por causa do cheiro de peixe podre que veio não sei de onde, e por isso perdi os dentes, caiu lá atrás. O senhor abre a porta pra que eu possa recuperá-los, por favor.

Nessa hora, depois de saberem a razão do ônibus parado fora de ponto, todos riram e fizeram algazarra. Nem seu Antenor aguentou ver a véia desdentada, riu também, e abriu a porta.

Dona Gorete desceu do veículo e correu numa passada curta olhando atenta para o chão sem a menor noção do local onde a prótese pudesse ter caído. Um rapaz que viajava em pé, na escada, muito solidário, seguiu-a de companhia; Cacilda desejava ajudar de alguma forma e foi atrás, outro homem também acompanhou.

A rapaziada mais afastada, na traseira do coletivo, zoava sem parar, cada um dizia uma coisa inusitada: - Alguém sabe se tem dente de ouro na dentadura da véia? - Agora, sem dentes, ela não poderá comer o churrasquinho de gato do João Grilo, lá do terminal. - Gordo, por acaso você viu, o jato que saiu da boca da mais velha? - Nossa! Vi coisa nenhuma, mas imagino que foi terrível!

Um homem que estava em pé no corredor, de frente para o seu Rodolfo, viu quando ele abriu e fechou a sacola e não se conteve, disse: - Tem peixe estragado dentro da sua mochila! Por que que o amigo não aproveita o ônibus parado e joga ele fora para nos livrar desse mau cheiro!

A moça sentada ao seu lado e que já viajava com a janela aberta também se manifestou: - Senhor, realmente, o cheiro é horroroso, embrulha o estômago da gente, joga esse peixe fora.

O grupo da frente foi na onda: - Joga fora o peixe podre! Joga fora... Bradavam todos.

- Dá um coro nesse cara, que rapidinho esse peixe some daqui de dentro! Falou a galera dos fundos que se juntou ao grupo. E riram da própria afronta.

Seu Rodolfo, quando abriu a mochila e logo sentiu a catinga que exalou, até tentou esconder o flagrante, fechou-a imediatamente, e foi nesse instante que se lembrou de ter comprado o peixe. Infelizmente agora estava estragado. Deveria tê-lo colocado no freezer da pensão onde a prima trabalha como chefe de cozinha, no trajeto pro seu serviço. Sem alternativa levantou-se e avisou aos que estavam ao seu lado: - Descerei rapidinho, mas volto para retomar o meu lugar, com licença. Já na calçada viu uma lixeira presa num poste, justo onde foi desovar o que seria o seu almoço de sábado com a família reunida. Lamentou-se.

A galera, atenta, vendo a sua atitude bateu palma. Mas teve quem ainda debochou: - Volta para o ônibus não, fica por aí mesmo, peixe fedorento.

E já que a idosa não retornava, os passageiros se irritavam com a sua demora. Os mais agitados começaram a importunar o motorista: - Piloto mete o pé, tão demorando muito. Alguns mais nervosos abriram a janela para golpear a lataria do veículo com a palma das mãos e fazer barulho.

- Eles já estão vindo! Falou alto alguém com boa visão que enxergou os quatro retornando, mas ainda distante, e que, por causa da senhorinha, não podiam correr.

- Piloto, dá uma ré pra pegar eles no caminho, a depender dessa senhora, hoje a gente dorme na rua! Gritou alguém na traseira do ônibus. Os mais nervosos tornaram a dar palmadas na lataria por breve lapso.

Por fim eles chegaram, e foi um alvoroço, todos aplaudiram, principalmente ao ver que Dona Gorete tinha sua prótese na boca.

É que os dois homens de companhia avançaram o passo e seguiram na frente, e cada um achou uma peça aparentemente intacta, uma no pé de uma árvore, na calçada, a outra no canto do meio-fio, e não muito distante uma da outra. Atrasou mais, porque entraram numa farmácia, no caminho de volta, para higienizar a prótese com ajuda de um farmacêutico.

Dona Gorete entrou no ônibus com um sorriso lindo, talvez tenha de consultar um odontologista. Por ora agradeceu seu Antenor efusivamente pela compreensão e a paciência. Agradeceu também o aplauso caloroso antes de retomar o seu lugar.

Esse evento causou uma mudança de comportamento dos passageiros que se calaram completamente. A viagem seguiu tranquila a partir de então, e sem mais nenhuma confusão.

Dilucas
Enviado por Dilucas em 06/10/2024
Reeditado em 13/10/2024
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