Entrelinhas: Vini Júnior – a distância entre a mente e o coração

Hay que ponerse em los zapatos de los demás. Este é o dito em espanhol que mais gosto. Ele diz respeito à empatia, a capacidade de sentir a dor do outro no nosso coração.

Sempre gostei de Ariano Suassuna. Não sei, só sei que foi assim! Com Suassuna descobri que, às vezes, as pessoas dividem a humanidade em quem já foi e quem ainda não foi à Disney. Assisti muitas de suas palestras e entrevistas na rede. As assisti muitas vezes. Numa destas palestras, Ariano declarou que, se pudesse, se naturalizaria negro. Não sei se já disse a vocês, mas como ele, sempre quis ser preto.

Meu pai é mulato, meu avô paterno era preto, meu bisavô paterno foi escravo. Minha família materna tem pele branca. Minha mãe passaria por uma escandinava com facilidade. Curiosamente, minha família paterna era mais bem sucedida financeiramente que a materna. Meu avô paterno, por uma confluência de acontecimentos, tinha uma vida estável e abastada. Meu avô materno, por outro lado, era um funcionário de carreira do já extinto departamento nacional de estradas e rodagem e teve sete filhos com a minha avó. Cresci entre essas duas realidades. Minha pele não é branca como a de minha mãe, mas ainda assim é branca; meus traços de rosto estão mais próximos aos do meu pai.

Sempre quis ser preto. Mas como querer nem sempre é poder, continuo branco, tão branco quanto o era quando nasci. Portanto, não tenho suficiente melanina para ter espaço de fala ao dissertar sobre como a sociedade trata os de pele preta. Tenho que dizer considero este tema importa muito maior que minha aventura pessoal no planeta Terra. O que conto a vocês neste capítulo está restrito à minha visão de mundo; o que escrevo diz respeito à minha construção pessoal (tal como espero ter feito nos capítulos já escrito) da ideia de racismo.

Sei da existência do racismo desde meus primeiros anos. Como a maioria da população, o estudei na escola. Adulto, minhas concepções foram, pouco a pouco, ganhando contornos mais nítidos. Aprendi com Silvio Almeida que o racismo tem muitas dimensões. Com Bárbara Carine e Katemari Rosa aprendi que o ensino pode e deve emancipador e decolonial. Intelectuais brilhantes. Mais recentemente, pelas brilhantes mãos de Itamar Viera Júnior, conheci as irmãs Bibiana e Belonisia. A história que as une encerra em si mesma a mais pura essência da escravista sociedade brasileira, de antes e de agora.

Contudo, qual a distância entre a mente e o coração? Os poucos centímetros que separam a cabeça do coração podem se multiplicar quando o assunto é uma dor que não é a nossa. Vamos tentar calçar os sapatos dos outros.

Voltemos setenta anos no tempo. Especificamente, voltemos à final da Copa do Mundo de 1950. Brasil e Uruguai. O Maracanã havia sido inaugurado havia pouco tempo e à época podia receber mais de 200 mil pessoas. O palco perfeito para o show perfeito. Especialmente após as vitórias nas fases anteriores sobre a Suécia e a Espanha, a imprensa, os torcedores e até mesmo os jogadores se mostravam muito confiantes na vitória.

Brasil começou o jogo dominando as ações e criando várias chances de gol. Friaça abriu o placar para o Brasil aos dois minutos do segundo tempo. Explosão de alegria. No entanto, Schiaffino empatou o jogo aos 21 minutos e Ghiggia virou o jogo aos 34 minutos. Banho de água fria. O Brasil tentou uma resposta, mas não conseguiu mudar o resultado. Nascia a expressão Maracanazo.

Desde pequeno, escutava e assim cria que o Maracanazo foi responsabilidade quase exclusiva de dois jogadores - Bigode e Barbosa. O primeiro, por ter sido firme o suficiente na marcação e ter sido superado Ghiggia nas jogadas dos gols uruguaios. O segundo, por ter deixado a bola entrar. Durante a minha infância, diversas vezes escutei que goleiros são poderiam ser pretos porque pretos não eram confiáveis. Acho que isso começou com Barbosa. Sabe o que Bigode e Barbosa têm em comum?

Há dois anos, fui visitar o museu do futebol no Pacaembu com minha esposa, minha irmã e meu cunhado. Uma das salas tratava do Maracanazo. Nela se destaca o que Bigode e Barbosa têm em comum. Eram dois dos três pretos que compunham a seleção derrotada. Uma grande injustiça. Quanto a sociedade, não apenas a Brasileira, deve a Bigode, a Barbosa, a Bibiana, a Belonisia! Alguma coisa mudou nestes quase setenta anos?

Vinicius José Paixão de Oliveira Junior nasceu doze de julho de 2000 na cidade de São Gonçalo, no estado do Rio de Janeiro. Vini Jr. se profissionalizou como jogador de futebol pelo flamengo e não muito tempo depois foi vendido para o maior time do mundo, o espanhol Real Madrid. Nos últimos dois anos, evoluiu até converter-se no mais decisivo jogador do clube merengue e no melhor jogador brasileiro em atividade. “Quem diria que esse dia um dia chegaria? Quem diria que o Vini Jr. chegaria um dia?”

Dizer que Vini de hoje é imparável dentro de campo é chover no molhado. Contudo, suas boas qualidades extrapolam as quatro linhas. Na mesma medida em que sua importância em campo foi aumentando, cresceu também a aversão dos torcedores adversários por ele. O racismo que Vini tem enfrentado foi parido por esta aversão que, acabou por se converter em ódio. Na sociedade atomizada em que vivemos hoje (cada um por si e Deus por todos), realmente não era de se esperar que um milionário bem-sucedido efetivamente se importasse com isso. Até porque muitas vezes, preto bem-sucedido vira branco. O que Vini fez foi justamente o contrário. Foi e tem sido corajoso. Foi e tem sido generoso. Foi e tem sido preto.

O futebol, na pessoa de Vini Jr., dentro e fora dos campos, mais uma vez me regalou algo muito precioso – fez com que algo que eu sabia com a mente fosse percebido pelo coração. Muito obrigado Vini por me fazer lembrar que o racismo não é exclusividade brasileira. Antes, ele está no DNA de nosso modelo civilizatório. Muito obrigado Vini Jr. por mostrar que o racismo está sempre no cio.

A questão é que agora ele tem um algoz que, diferentes de muitos outros, não teve a língua cortada. Vini é jovem, é rico, é conhecido, é preto. Ao que parece, Vini Jr. não se acostumou a ver sonhos mortos. Não creio que o racismo encontrará seu fim facilmente. Mas assim é a vida e assim o é também o futebol.

Sempre quis ser preto, não pude. Muito obrigado Vini por sê-lo por todos nós.

Resende, 10 de junho de 2024.

P.S. Este é o capítulo de um livro de contos titulado "Entrelinhas, o futebol para além do campo".

Paulo Victor Santos Souza
Enviado por Paulo Victor Santos Souza em 05/10/2024
Código do texto: T8166795
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