Entrelinhas: Romário – de repente, algo lindo pode acontecer

A maior parte das pessoas se intimidaria por ser reconhecida e chamada de baixinha. Eu mesmo posso dizê-lo. Afinal, fui uma criança nos anos noventa e um adolescente nos anos 2000. Mas isso só vale para as pessoas normais.

Romário de Souza Faria era o Ockham do futebol. O Baixinho era o puro suco da simplicidade e do pragmatismo encerrado em uma palavra – gol! Talvez por isso, tenha feito mais de mil deles. Rápido, preciso, cruel, falastrão, marrento. Romário é o melhor finalizador que conheci. O Deus dos pequenos espaços. Com Romário, de repente, algo lindo podia acontecer! Vamos a um desses momentos.

19 de setembro de 1993. Brasil e Uruguai. Último jogo das eliminatórias para a copa de 94. Depois de três decepções sucessivas em copas (talvez a maior delas em 82, quando o time era de outro planeta), o Brasil, pela primeira vez, corria risco real de não participar de uma copa do mundo. Quem ganhasse aquele jogo, iria a copa. Além disso, aquele duelo representava o retorno de Romário à seleção depois de um período de afastamento. Romário e Zagallo não se davam bem. Romário não era fácil de lidar, Zagallo tampouco. Mas vamos para o jogo. O Maracanã estava lotado e quem não pôde entrar no estádio, estava paralisado em frente da TV. Para apimentar a coisa toda, o Uruguai tinha um time excelente e o jogo estava sendo considerado um tipo de reedição da final da copa de 1950 vencida pelo Uruguai.

As memórias deste jogo figuram entre as primeiras que tenho e que mantenho vivas até hoje (minha primeira memória no futebol é de alguns meses antes – o pênalti perdido por Boiadeiro na Copa América). O Brasil destruiu o time Uruguaio, que não viu a cor da bola. Romário já havia feito um gol de cabeça, um dos muitos que fez ao longo da carreira. O golpe de misericórdia veio quando Mauro Silva roubou uma bola no meio-campo e meteu-a na frente para o Baixinho. De repente, algo lindo aconteceu. Romário driblou o goleiro de uma maneira única, tendo mudado de direção durante o drible, e empurrou para dentro. Entre a convicção de que o gol sairia e a bola morrer no fundo da rede, experimentei uma das maiores explosões de alegria da minha vida. Não sou capaz de descrever com palavras o que aquela fração de segundo significou para mim, a eternidade em um instante.

Aquele ano, contudo, ainda me guardava outros momentos incríveis. Meus pais se casaram em 84 depois de quase onze de namoro. Em 93, o relacionamento já estava desgastado e mesmo na pequenez dos meus sete anos, eu já percebia que as coisas não caminhavam bem entre eles. De repente, algo lindo aconteceu. Não lembro exatamente o dia, mas me lembro que estava no banho. A porta do banheiro já estava aberta. Minha mãe entrou, puxou a cortininha e disse algo que nunca vou esquecer – estou grávida, você vai ganhar um irmãozinho. Naquele momento, eu pulei, gritei e chorei. Eu não estaria mais só! Os anos que se seguiram se encarregaram de demonstrar que eu não estava errado.

Meu irmão, na verdade, uma irmã, nasceu em novembro daquele ano. Eu me lembro dela chegando em casa, me lembro da meia luz do seu quarto, e do silêncio que se exigia de mim para que ela não despertasse. Você ainda não sabe disso, mas eu e ela somos muito diferentes fisicamente. Ela tem a pele mais branca que a minha e traços finos e suaves em comparação com as minhas feições.

Minha irmã, desde que havia chegado em casa, passara o tempo, como todo bebê recém-nascido, dividida entre dormir, chorar e mamar. Ela praticamente não abria os olhos. Passados alguns dias, minha pediu que eu a vigiasse no berço por alguns segundos enquanto ela apanhava algo em outro quarto. De repente, algo lindo aconteceu. Minha irmã finalmente abriu os olhos e eu pude vê-los. Minha irmã abriu os olhos para mim! Azuis! Azuis! Os olhos dela eram azuis! Azuis como aquele que a gente só vê quando o mar encontra com o céu no horizonte de um dia ensolarado. Nunca vou esquecer aquele azul. Nunca vou esquecer aqueles olhos.

Crescemos juntos e juntos compartilhamos o mel e o fel - a doença da minha mãe, a separação dos meus pais, o meu casamento, o casamento dela. Nela eu vi ao longo dos anos alguns dos meus vícios e virtudes, infelizmente e felizmente. Eu a vi se tornar uma mulher grande, alguém de quem me orgulho muito e a quem eu recorro quando a vida fica pesada demais. Com ela eu divido o sangue, o sobrenome e a amizade de toda uma vida.

Ainda falando do baixinho Romário, seu segundo gol contra o Uruguai, embora muito importante, não é o que mais me marca. Muita gente tem uma música, um poema ou um filme da sua vida, algo que de algum modo a resume, a encerra. Pois bem, eu tenho um gol!

Brasil e Holanda, 9 de julho de 1994. Quartas de final da copa do mundo. 1x0 Brasil. De repente, algo lindo aconteceu. Lançamento de Aldair, cruzamento de Bebeto e gol de Romário, o meu gol, aquele que me escolheu como dono, aquele que me resume e que encerra em si mesmo uma vida de amor pelo futebol. Romário acertou um tiro no c# do mosquito! Para mim, este gol é o Abaporu de Romário! É tão incrível que, nas palavras do próprio baixinho, ele mesmo não tentou fazer outro igual ao longo da vida.

Até hoje, com quase quarenta anos, quando a vida parece pesada demais, assisto esse lance; me concentro nos seus aspectos estéticos, nos sons, na cor do uniforme, nas emoções. Em algumas vezes, choro; em todas as vezes, me emociono. Então me lembro minha irmã, dos seus olhos e de como, de repente, algo lindo pode acontecer!

Resende, 11 de Junho de 2024.

P.S. Este é o capítulo de um livro de contos titulado "Entrelinhas, o futebol para além do campo".

Dalmo Rivera
Enviado por Dalmo Rivera em 05/10/2024
Código do texto: T8166792
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