Entrelinhas: Ronaldo Nazário – o antes, o então e o depois

Há várias maneiras de dizer o quão importante é um abraço:

O melhor lugar do mundo é dentro de um abraço – Jota Quest

É assim que é o abraço: coração com coração, tudo isso cercado de braço – Mário Quintana

O abraço ajuda a aumentar os níveis de ocitocina, um tipo de hormônio gerado no hipotálamo que promove sentimentos positivos - Harvard Medical School

Consegue se identificar com alguma destas definições? Eu espero que sim. Saiba você que eu também tenho uma definição pessoal de abraço, mas não vou te contar agora, só para manter o suspense. Para falar disso, tenho que te falar um pouco sobre um dos maiores jogadores que tive o privilégio de ver jogar – Ronaldo Nazário.

Os feitos de Ronaldo Nazário dentro das quatro linhas fizeram com que passasse a ser cognominado Ronaldo, o fenômeno. É fato inegável que se tratava de um jogador ímpar. Não pelos títulos mundiais, não por ter sido eleito o melhor do mundo por três vezes, não por ser imparável em seu auge, não por unir Madrilenses/Rossoneri e Barceloneses/Nerazzurri, mas, e aí entra um claro viés, por sua capacidade de recomeçar e seguir buscando seus objetivos à despeito dos acidentes de percurso.

Ronaldo já havia sido eleito o melhor jogador do mundo por duas vezes e, no ano 2000, vestia a camisa da Inter de Milão. Era 12 de abril de 2000, a final da Supercopa da Itália contra a Lazio. Ele retornava aos gramados depois de quase cinco meses. Era, obviamente, o palco perfeito para um retorno triunfal. Contudo, a vida é uma caixinha de surpresas. Ronaldo entrou em campo aos treze minutos do segundo tempo, mas o som que se ouviu não foi da torcida comemorando um gol seu. Numa arrancada, Ronaldo rompeu os ligamentos do joelho direito. O som do estalo se pode ouvir na gravação do momento da lesão, à época, reproduzida repetidas vezes em todos as mídias esportivas. Trata-se de uma lesão grave, gravíssima. Ainda hoje é possível encontrar reportagens da época em que se questionava, e com certo grau de razão, se esse seria o fim do Fenômeno. Confesso que eu mesmo pensei que esse seria o caso. Mas Ronaldo voltou, justamente em tempo de participar da copa do mundo de 2002. Sigamos mais especificamente aos já idos trinta de junho de 2002. Voltemos à Brasil e Alemanha. Não àquele Brasil e Alemanha do 7x1, mas à final da copa do mundo da Alemanha!

Eu assistia ao jogo na sala de casa. Meu pai preparava o almoço na cozinha, mas mantinha um olho no peixe e o outro no gato. À propósito, meu pai cozinha muito bem. Queria ter herdado esta característica dele, mas o que me veio mesmo foi um mamilo triplo. É a vida.

Também é preciso construir um quadro da minha relação com o meu pai até então.

Sempre aprendi muito com meu pai, um homem capaz de conversar sobre qualquer assunto, especialmente futebol, música e política. Exímio jogador de sinuca, baralho e purrinha, ele vestia perfeitamente o estereótipo do boêmio inveterado. Era um quincas berro d’água da vida real, sempre demonstrando dificuldades em se submeter às obrigações de um relacionamento estável. Embora tenha minhas opiniões sobre o que ele não foi como marido, prefiro me concentrar no que ele foi como meu pai.

Aos quinze anos de idade, eu me encontrava em período de transição importante na minha relação com ele. Uma parte de mim ainda sustentava por ele um fascínio infantil. Eu falava como ele, estruturava meu pensamento como ele, agia como ele em muitas situações. A outra parte, por outro lado, já via nele o adulto que eu não gostaria de ser, imprevisível, irresponsável, instável. Não é difícil caracterizar esses dois lados, mas, ainda hoje, não consigo determinar onde um terminava e onde o outro começava. Era tudo água, mas sólida e líquida ao mesmo tempo.

A transição de fase se concluiu algum tempo depois. Depois de uma briga, saí de casa e fui viver com a minha avó. Não estou seguro de quanto tempo permaneci na casa dela. Talvez um mês, talvez três. Mas aquilo foi um divisor de águas. Até hoje não sei se voltei para casa, ou se voltei completo. Não dava mais para ir para Strawberry Fields Forever. Não dava mais para ignorar que eu havia decidido um lado. Desse modo, os meses que se seguiram foram marcados por hostilidade e distanciamento. Eu me encarregava de reforçar esses sentimentos lendo Edgar Alan Poe e Augusto dos Anjos continuamente e meu pai, de sua parte, apenas era meu pai, o que já era suficiente para garantir para garantir que Gaza sempre fosse Gaza.

Agora voltemos à final da copa. Aquela partida marcava um duelo particular entre Oliver Kahn, melhor goleiro do mundo à época, talvez um dos melhores de todos os tempos, e Ronaldo, o Fenômeno. Kahn já entrou naquele jogo eleito o melhor jogador da copa e Ronaldo, ainda que já tivesse se mostrado importante naquela copa, ainda jogava tendo sobre si a sombra da lesão e o fracasso na final da copa anterior.

Ainda que o jogo tivesse se mostrado equilibrado até certo ponto, o Brasil contava com um Rivaldo soberbo (talvez ele mesmo mereça um capítulo neste livro) e um Ronaldo com o modo Fenômeno ativado. O Brasil já havia marcado um gol, mas a partida continuava perigosamente equilibrada. Aos 34 do segundo tempo, Kleberson cruzou, Rivaldo fez um corta luz e Ronaldo venceu Kahn definindo a partida e o campeonato para o Brasil.

O Brasil inteirou parou, por alguns segundos ninguém respirou, naquele intervalo de tempo, o coração de todos os brasileiros bateu sincronizado. Não foi diferente entre mim e meu pai. Ele largou o que estava fazendo na cozinha, correu até a sala e me abraçou. Aquele foi um abraço inteiro, um abraço de verdade, um abraço de comunhão de almas, um abraço capaz de eclipsar, ainda que por um breve instante, rusgas, medos, ofensas.

Ao futebol, meu muito obrigado por me permitir aprender como um abraço de verdade pode sobrepor-se a muitos sentimentos nocivos e tóxicos, o que me leva a minha definição de abraço – um momento de paz que desejamos que dure para sempre.

O Fenômeno pós lesão ainda ganhou muito títulos e concretizou sua posição como um dos melhores jogadores das últimas décadas, mas há quem advogue que ele nunca mais foi o mesmo. Concordo com isso. O ainda brilhante Ronaldo, entrou para um seleto hall de pessoas substituídas por versões delas mesmas, como Paul Mccartney e Avril Lavigne. O substituto, contudo, era uma versão dele mesmo que viveu dos lampejos do que originalmente foi. Isso sempre me deixou um pouco decepcionado, não pelo que ele efetivamente foi, mas pelo que poderia ter sido.

Meu relacionamento com meu pai ainda existe. Mas após tudo que aconteceu naquele ano, nunca mais foi o mesmo. Assim como o Brasil tem perseguido um novo título mundial desde junho de 2002, eu também, confesso a vocês, tenho perseguido um abraço como aquele. Tal e qual o Brasil, ainda não o encontrei.

Não é o caso de não ter recebido abraços nestas últimas duas décadas. Na verdade, recebi alguns. Mas daquele adolescente que recebeu aquele abraço sobrou pouco. Os anos que se seguiram foram duros. Pouco depois daquele dia meu pai saiu de casa e nossa relação foi se degradando; peça por peça, o navio que saiu do porto foi se modificando, de modo que a pessoa que sou hoje, e que você está conhecendo por meio deste livro, é muito diferente daquele garoto que queria ser como o pai.

Olhando para trás, lamento não pelo que vivemos e somos, mas pelo que poderíamos ter sido. Isso vale para minha relação com o meu pai, mas também vale para Ronaldo Nazário, o Fenômeno.

Resende, 29 de Maio de 2024.

P.S. Este é o capítulo de um livro de contos titulado "Entrelinhas, o futebol para além do campo".

Paulo Victor Santos Souza
Enviado por Paulo Victor Santos Souza em 05/10/2024
Código do texto: T8166782
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