Entrelinhas (Prólogo): Renato Gaúcho - a vida como ela é!

Esta coleção de histórias é uma viagem pelo universo do futebol e um mergulho nas águas da introspecção. No futebol, encontramos um espectro vasto de narrativas e emoções, que se desdobram em histórias pessoais e coletivas. Por isso, escolhi começar com um "capítulo zero" – uma introdução para estabelecer nossas bases. Quero ser transparente: aqui, entre mitos e verdades, optei por deixar os mitos brilharem. Vou pular a história conhecida de Charles Miller e a evolução tática do jogo. Não porque não fosse minha intenção impressioná-lo de algum modo, mas quando o mito é maior que a verdade, que prevaleça o mito! Prefiro deixar você acreditar que se trata de uma escolha, e não de uma limitação. Afinal, este livro não busca ser uma enciclopédia de fatos, mas um convite para sentir e perceber o futebol de uma maneira mais íntima e pessoal. Sigamos então através de uma história - Renato Gaúcho: a vida como ela é!

Era 25 de junho de 1995. Flamengo e Fluminense duelavam pela final do campeonato carioca daquele ano. O jogo estava empatado, o que conferia o título ao Flamengo que à altura dos trinta e poucos do segundo tempo tinha um jogador a mais em campo.

Em tempo, torço pelo Flamengo, ou melhor, sou flamenguista. Minha relação com o Flamengo é difícil de explicar, mas penso que tem algo a ver com o vermelho, a cor mais rápida dentre as cores que compõem o arco íris. Meu pai é botafoguense e, tendo em vista o que ele fez para a minha irmã mais nova ser alvinegra, concluo que não há qualquer lógica na escolha de time de futebol, é algo irracional, cósmico. Sou flamengo desde sempre e, a propósito, minha irmã também é.

Àquela altura, eu estava de corpo e alma preparado para explodir em um gozo que, na minha mente ingênua, havia sido reservado para mim desde os tempos mais primórdios. Uma memória base estava sendo gestada handcrafted by God.

Pois é, mas não foi.

Com a vitória aparentemente garantida, meu pai, mesmo relutante como todo gato escaldado, concordou em me levar para dar uma volta de carro e comemorar. Ele até me permitiu abrir a janela, sentar-me nela, tirar a camisa e girá-la no ar como se fossem as hélices de um helicóptero. Vale lembrar que, no início dos anos noventa, as pessoas eram mais condescendentes com práticas que colocavam a vida em risco. Mas, para tirar meu pai da fogueira, devo dizer que ele dirigia a apenas 25 km/h.

Meu pai parou para comprar cigarros com a promessa de que só demoraria dois minutos! O bar do Jacó ficava a apenas uns quinhentos metros da minha casa. Ele saiu do carro, deixando-me exultante ao balançar a camisa sentado na janela do carro. Não me lembro ao certo, mas eu cantava na mais alta voz algum hino popular que ridicularizava nosso adversário, o Fluminense. Eu sabia que era errado falar palavrão, mas aquele era um dia especial.

Mas meu pai voltou para o carro com uma cara de quem tinha algo para dizer, mas não sabia como. Aquele olhar, aquela feição. Vendo as coisas na perspectiva do adulto que sou, ou tento ser hoje, imagino que meu pai deve ter pensado em ocultar-me o que estava prestes a me dizer e dessa forma, pelo menos postergar o sofrimento que eu muito proximamente sentiria. Não obstante, meu pai não tentou encher de alegria e enfeitar as coisas que eu via! Na verdade, ele nunca fez isso. De sua boca, como a trombeta do anjo que anuncia o apocalipse, saiu algo como:

- O Fluminense fez um gol, um gol de barriga do Renato Gaúcho. Acho melhor a gente voltar para a casa!

Vamos por partes, começando com a notícia devastadora: o Fluminense fez um gol! Minha primeira reação foi culpar meu pai por ser o portador de notícias tão mórbidas, direcionando para ele toda a raiva que, um segundo antes, não existia. Da raiva, passei à dúvida. Seria uma falha na matrix? Quando a ficha finalmente caiu, o que se ouviu não foi um simples grito, mas O grito! Não havia dúvida: eu estava sob a influência maligna dos signos do zodíaco! Embora não acredite em astrologia, nem antes nem agora, os traumas vividos na epigênese da infância têm o poder de complicar um pouco as coisas.

O fato de o gol ter sido feito pelo Renato Gaúcho e de barriga acrescentou crueldade ao processo. Não considerava Renato o mais rápido de seu tempo. Tampouco o achava o mais habilidoso. Mas ele tinha estrela e era, à época, mais marrento e fanfarrão que é hoje. Em um breve momento pensei em toda a humilhação que àquilo me traria, mesmo anos depois.

A volta para a casa foi um rito de passagem, daqueles muitos que experimentamos ao longo da vida. Por pouco dava para voltar de ré! Eu que havia me preparado para desfilar triunfante por toda Roma, voltei três minutos depois para a casa, com o rabo entre as pernas, e com a minha primeira grande derrota no futebol na bagagem. Restou-me chorar na almofada da sala e evitar, preventivamente, quaisquer programas de TV que pudessem noticiar aquela catástrofe mais uma vez e me fazer reviver todo aquele terror! Enquanto chorava, o barulho dos fogos, que eu sabia que não eram para mim, por mim ou pelo flamengo, explodiam como que dentro da minha cabeça.

Depois disso, já não lembro. Devo ter adormecido.

Naquele dia, tive minha primeira lição sobre um assunto que considero central na existência humana, o futebol havia começado a ensinar a sofrer. O tempo, grande senhor que de fato é, tratou de delinear melhor os traços daquela lição: a vida pode e vai te frustrar, sem preâmbulos ou avisos! Os imprevistos estão aí e o Universo não deve nada a ninguém. Na real, o Universo caga na nossa cabeça quando lhe convém! É Plug and Play sabe?! Desde então, alguns bons anos passaram, mas aquele maldito gol de barriga ainda me acompanha, como um arroto inesperado que nos salta da boca por algo que já tínhamos esquecido que havíamos comido, pepino, por exemplo. Lembrei-me daquele gol quando minha mãe teve câncer, quando meus pais se separaram, quando minha esposa foi diagnosticada com uma doença incurável, quando percebi que não poderia ter filhos naturais, quando tive depressão. Na verdade, ainda tenho depressão.

Se neste momento você estiver sentindo certo grau de pena de mim, repreenda-se! É a dó te dominando. Eu não sou o único a sofrer. Não sou especial pelas coisas que me ocorreram ou me ocorrem. Coisa pior acontece todos os dias com pessoas de tudo quanto é canto. Somos todos polvo de estrellas. Sou infeliz? Claro que não! Nem tampouco fico procurando barrigas de Renato Gaúcho em cada esquina. Muito pelo contrário! Penso hoje que as inevitáveis dificuldades da vida quando não nos matam, ou nos tornam pessoas mais bem preparadas (não necessariamente mais alegres, sinto muito) em um tipo de sobrecompensação, ou mais sensíveis às coisas lindas e incríveis que nos são regaladas pela mesma vida que, bipolar que só ela, nos sacaneia diariamente.

Ao tentar rememorar acontecimentos marcantes da vida com o objetivo de resignificá-los, eu, autor e personagem, entendi que não sou mais o mesmo. É como se, ao tirar alguma coisa do mundo das ideias, modificasse um pouco a tal coisa, tá ligado? Antecipadamente peço-te desculpas. Enquanto escrevo, me perco, justamente porque nem sempre sei que versão de mim escolhi apresentar para vocês. É raro, mas acontece com frequência.

Os anos que se seguiram acabaram por demonstrar que o futebol ainda marcaria a minha vida de muitas maneiras e me ajudaria, como diria o grande Patrick Rothfuss, a tornar-me justamente a história que tenho contado de mim mesmo. Talvez, e assim espero, o futebol tenha contribuído para que você seja quem é. Espero que, ao compartilhar essas histórias, você também possa encontrar ressonância nas suas próprias experiências. Que este livro não seja apenas sobre futebol, mas sobre viver, aprender e encontrar beleza nos momentos mais inesperados. Bem-vindo a "Entrelinhas", aonde as histórias vão além do campo e tocam o coração de quem as vive.

Resende, 02 de fevereiro de 2024.

P.S. Este é o capítulo inicial de um livro de contos titulado "Entrelinhas, o futebol para além do campo".

Dalmo Rivera
Enviado por Dalmo Rivera em 01/10/2024
Reeditado em 05/10/2024
Código do texto: T8163959
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