UM BOM PAPO

Cheira daqui, cheira dali. Um poste, mais um poste. Afinal, sombra sobre a calçada para aliviar o calor.

Saladino – Oi Oleg, tudo legal? Dia lindo, heim? Chega um pouco mais para lá. O sol está muito forte. Meus dedos estão queimando. Faz tempo que você chegou?

Oleg – Faz e estava meditando, mas com você por perto eu desisto.

Saladino – Eu prefiro conversar com os amigos.

Oleg – É. Dá para notar. Acordei cedo porque tem alguma coisa me incomodando aqui na orelha esquerda. Olha aqui, por favor.

Saladino – Ih! É um carrapato e dos grandes.

Oleg – Vê se consegue tirar...

Saladino – Não consigo. Ele está lá dentro. Quando Maneco chegar, você deita junto dele, passa a mão na orelha como quem está coçando e faz voz de choro. Aí ele vê o carrapato e tira.

Oleg – É, vou fazer isso. Naquele saco preto tem algo de comer, mas a lixeira é muito alta e eu não pude pegar. Tem água naquela vasilha branca. Você já lanchou?

Saladino - Agora eu só como nas marmitas de Ifood...

Oleg - Onde você acha isso?

Saladino - Na lixeira do prédio 230 quando deixam aberta para o caminhão pegar.

Oleg - E lá batem em você?

Saladino - Não, eu sou sempre mais rápido do que o jato d’água.

Oleg - E esse negócio com nome feio é bom?

Saladino - Não sei dizer, porque para mim tanto faz, eu não sinto o gosto das coisas. Sendo de comer é o que importa. Tem molho, pedaços de pão, queijo e ovo.

Oleg - Eu gosto muito de ovo.

Saladino - Sim. Todo mundo gosta de ovo. Dizem que é alimento completo. Eu ganhava sempre antes de me mandarem embora.

Oleg - E por que você foi mandado embora?

Saladino – Foi porque eu rasguei o sofá.

Oleg - Rapaz! Você rasgou o sofá?

Saladino – Rasguei ele todo, mas não foi de propósito. Acho que foi alucinação por causa do estresse de não ter o que fazer. Viver em apartamento é uma merda. Eu comecei a desconfiar que o sofá queria me bater todas as vezes que passava por ele. Rosnei, ele cresceu na minha frente, então reagi e na fúria não consegui me controlar. Só parei quando ele estava todo rasgado.

Oleg - E você foi mandado embora por isso? Só por isso?

Saladino - É. Queriam mandar me matar, mas aquela menina chata de nariz escorrendo sempre, fez um escândalo, aí o pai dela disse que não ia mandar me matar, mas que eu não ficava nem mais um dia naquele apartamento.

Oleg - E você disse o quê, para eles?

Saladino - Só resmunguei, mas disse tudo o que estava aqui pela garganta. Que eles são uns bostas. Idiotas metidos a donos do mundo, como se nós precisássemos deles. Eles que precisam de nós, da nossa companhia, nossa vigilância, nossa esperteza.

Oleg - É. Gente é bicho estúpido mesmo. Não tem noção de sua fragilidade e vive descontando as frustrações nos outros.

Saladino - A novidade é dizer para os outros idiotas – este é o meu filho de quatro patas.

Oleg – Repare a placa no portão daquela casa: se você não concorda que a casa é do meu pet, não entre porque não é bem-vindo aqui.

Saladino – Ridículo. Esse povo está doente. Precisa passar fome para arranjar o que fazer...

Oleg - E você foi mandado logo embora?

Saladino - Nessa mesma noite, me botaram do lado de fora do portão do condomínio. Eu me fiz de coitadinho, deitado no tapete porque a noite estava fria e não tinha falado com os outros cachorros de rua. Era uma boca nova que estava entrando no pedaço e isso podia ser ruim para mim, porque eu não aprendi a brigar. Fui castrado bem novinho e por isso procuro me dar bem com todo mundo. Quando o dia amanheceu vi Maneco apanhando latinha, fiz toda festa que sabia. Lambi a mão dele suja de refrigerante e fui adotado na mesma hora.

Oleg - Maneco é gente boa. Diferente de todo mundo que eu conheço.

Saladino - É. É mesmo.

Oleg - Eu não tenho o que reclamar dele, sempre separa uma coisinha para o jantar e não tem esse negócio de dar banho na gente.

Saladino - A chuva faz isso melhor do que qualquer petshop.

Oleg - Que língua é essa que você está falando de vez em quando?

Saladino - Não sei. Só sei que é o nome do canto para onde me mandavam naquela caminhonete toda fechada, com os outros cachorros, todos cheios de frescura.

Oleg - Até quando você vai usar essa coleira?

Saladino - Sei lá. É Maneco quem coloca em mim. Tanto faz, não incomoda mais não e tem o meu nome, Saladino, gravado nela.

Oleg - Foram seus pais que colocaram esse nome em você?

Saladino - Não. Foi o homem que me comprou no canil aonde eu nasci. Eu não conheci meus pais.

Oleg – Não? Como assim?

Saladino – No canil a gente fica junto da mãe só até abrir os olhos. Depois é examinado. Se não passar no exame é descartado. Se passar, ganha certidão de nascimento com o nome da família e vai ser cuidado por pessoal especializado, porque a mãe vai ter que produzir nova ninhada.

Oleg – E você foi descartado?

Saladino – Fui, porque disseram que eu estava fora do padrão da raça.

Oleg – Mas não lhe mataram. Você está vivo aqui na minha frente.

Saladino – É porque tem gente que vai ver o exame para comprar os que são descartados para vender nas feiras, mas tanto machos como fêmeas são castrados que é para não misturar raças e prejudicar os de puro sangue.

Oleg - Vamos pegar um pombo daqueles para comer?

Saladino - Eu quero aprender a pegar moto. Eu acho mais legal.

Oleg – Eu vou falar com meu filho para lhe ensinar, ei! Espere por mim.

Saladino – Vamos lá velho mole, o último lá é a mulher do padre...

OBSERVAÇÃO:

Este texto foi inspirado num comercial de forração de móveis que mostra a dona da casa chegando enquanto o cão está estraçalhando o assento do sofá que, nada sofreria se estivesse sob a proteção do tal produto maravilhoso.

Como eu sou frontalmente contra a permanência de “animais de estimação” sob o mesmo teto dos humanos, usando os mesmos equipamentos em ambiente próprios à nossa Espécie, imaginei esse diálogo entre um cão idoso, versado nas condições da vida livre e um jovem recém liberto das amarras humanas.

Ao mesmo tempo em que “humanizo” os personagens, coloco de forma incisiva o meu ponto de vista nessa relação entre Espécies de hábitos e expectativas nem sempre coincidentes.