A HISTÓRIA DE TINHOSO, LOLITA E CARVÃO.
Essa história tem como pano de fundo o bioma da caatinga, com toda sua aridez, devido à quase ausência de chuva.
A família Araripe pode ser considerada do tipo resiliente, vive isolada nesse mundo de vegetação ressequida em situação que se aproxima da miséria. Sua alimentação vem de uma agricultura familiar de subsistência das mais precárias.
O pouco de água que conseguem é dividido quase que irmãmente entre humanos e galináceos.
Em meio a essa desesperança coletiva, composta de dois adultos e três crianças sulcados pelo ressecamento do corpo, que vai deixando marcas expressivas principalmente no rosto de todos.
Um evento inesperado acontece nas primeiras luzes do amanhecer de mais um dia, o relinchar de três jegues desperta a todos, três jegues de porte médio, sendo dois caramelos e um pretinho estão ali diante da família, aparentemente assustados, quase verbalizando um pedido de socorro coletivo.
Os Araripe em algum momento até sonharam em possuir um jegue para chamar de seu, afinal, essa resistente variação de asno, se adequou tão bem ao interior do Nordeste brasileiro, que se transformou logo no melhor amigo do sertanejo.
Agora eram três, ali diante dos atentos e incrédulos olhos dos Araripe. A primeira coisa que passou pela cabeça do chefe da família foi como conseguir água e alimento para matar sede e fome da trinca de jegues visivelmente desnutridos.
As crianças em euforia correram para saudar essas novas companhias, poderiam se divertir montando esses quadrúpedes em versão compacta e ainda se poupar no carregamento de água, usando-os para o transporte de água do distante açude.
Esses animais que podem pesar até 500 quilos e carregar um terço de seu peso vivem em média 25 anos, mas se bem tratado, pode completar 50 anos de vida.
Interessante como um fato interfere na vida de uma família, Seu Tonho o patriarca da família, se empolgou com a chegada do trio e não pensou duas vezes, e partiu para a construção de um alojamento para o trio. No final da tarde, os jegues já dispunham de uma estrebaria improvisada, que daria mais conforto ambiental para os ilustres hóspedes.
Dona Cida, passou a dar tratamento especial a fêmea batizada de Lolita, que agora hidratada e alimentada fornecia leite, logo transformado em uma espécie de queijo caboclo.
Tinhoso, o maior e mais forte do trio, passou a ser o responsável por arar as ressequidas terras, onde Seu Tonho plantava mandacaru, feijão e macaxeira.
Já Carvão, o menorzinho se transformou num brinquedo das crianças, dada a facilidade para montar e desmontar do jeguinho, que não largava dos pés das crianças, que sempre tinham algum alimento para agradar o Carvão.
Com apoio direto do trio de jegues, a vida dos Araripe sofreu mudança radical, agora com terras melhor aradas e mais água disponível, logo sua agricultura familiar mudou de patamar.
Impressionante como um fato, até certo ponto inesperado pode alterar para sempre o cotidiano de uma família no limite da miséria.
Seu Tonho não sabe, mas esses dóceis animais que chegaram aqui com portugueses e tão bem se ambientaram ao bioma da caatinga passam por um momento de inflexão na sua existência, por duas razões muito concretas.
A primeira foi o advento das motocicletas que devido ao bom preço de compra, consumo baixo de combustível e deslocamentos mais rápidos, levou ao abandono de muitos jegues, que passaram a vagar sem destino definido pelas cidades e também se enfronhando caatinga a dentro.
A outra razão, esta mais complexa, pode vir a extinguir a raça, um acerto entre o governo brasileiro e o chinês está permitindo o abate dos animais, fruto do alto valor de mercado do couro de jegue, que é matéria prima na produção de ejiao, um medicamento muito consumido nesse país oriental, e claro também a carne para consumo humano.
Existe um movimento para preservação da espécie, mas 20% do plantel de 500 mil jegues já foram dizimados por compradores chineses. Agora é esperar para ver o que virá.