Dolores, uma mulher marcada pela ingratidão

Dolores era uma mulher de postura curvada, seios avantajados e uma estrutura arredondada. Seus braços eram curtos, mãos pequenas e alvas como a neve, exibiam suas veias, marcadas pelo reumatismo devido ao árduo trabalho de mais de meio século numa máquina de costura. Usava óculos de lentes espessas. Heróica em sua resiliência, conseguia passar a linha pela agulha da máquina com destreza. Suas unhas eram densas e seu cabelo, liso e natural, numa mistura de preto com mechas brancas. A expressão em seu rosto era de cansaço. Ao se levantar de seu posto de trabalho, apoiava-se em sua bengala. Nunca sorria, para esconder os dentes falhos e cariados. Sua aparência causava certa apreensão nas crianças e desconforto nos adultos. Mas isso não se devia à sua obesidade ou à postura corcunda. O lado direito de seu rosto sofreu uma queimadura que desfigurou sua face, o que lhe dava uma aparência enrugada e endurecida.

Essa queimadura marrom no lado direito do rosto, parecia um relevo acidentado, como as crateras da lua, era o motivo das repulsas aos olhos de todas as pessoas. Ela morava numa vila de pequenas casas, paga pelo seu único filho, operário numa oficina de automóveis. Fazia também costura para toda a comunidade, lavava roupas de conhecidos e ainda cuidava de todas as tarefas domésticas. Bene, seu descendente, quando era pequeno, saboreava as refeições preparadas por ela com muito gosto e prazer, mas à medida que ia crescendo, mostrava aos poucos uma repulsa por essas refeições. Até que um dia, não suportando mais aquele tipo de comida, comunicou à mãe, com um pretexto descabido, que por conveniência do trabalho, passaria a se alimentar na fábrica e em restaurantes. Dolores fingiu não perceber a verdade, triste pela ingratidão, resignou-se. Daquele único filho de mãe solteira, vinha-lhe todo o bem e o mal que uma genitora dedicada e generosa podia suportar.

Ela ignorava o desprezo alheio, contanto que os beijos e os carinhos de seu filho amado aliviassem suas amarguras.

Um carinho, uma palavra, um beijo para ela era tão divino como um dia de sol, era a suprema carícia para o seu triste coração de mãe. Mas todos esses afetos foram escasseando com o crescimento do Bene. Quando criança falava mais que papagaio tagarela, abraçava-a, enchia de beijos a face esquerda, onde não havia queimadura; agora, só pedia a bênção e beijava-lhe a mão. Ela compreendia tudo e emudecia. Bene sofria menos porque não percebia. Ao ingressar na escola pública do bairro, conheceu vários colegas, os que viram ele chegar com a mãe, logo apelidaram-no de filho da queimada. Aquilo irritava-o e ele respondia sempre.

Os colegas riam e debochavam. Bene queixava-se aos professores e estes exigiam que os meninos parassem com a injúria, chegaram mesmo a castigá-los, mas a alcunha se disseminou como um vírus, não era só no estabelecimento de ensino que o chamavam assim. Na rua, muitas vezes, ele ouvia de uma janela dizer: olha o filho da queimada! Eram as irmãs dos colegas da escola, meninas novas e inocentes, influenciadas pelos irmãos, que magoavam Bene toda vez que o viam passar. Na padaria, onde ia sempre comprar pão, os funcionários logo aprenderam o apelido. Os atendentes desejavam ofertar o alimento e afastando as crianças pequenas que se aglomeravam ao redor, diziam: “Este pão é para o filho da queimada!” Bene desejava pagar e não receber qualquer presente, nem ouvir em coro o estribilho: “Filho da queimada, Filho da queimada!”

Bene, de cabeça baixa e com um rubor intenso que parecia tingir até a ponta de seus cabelos de vergonha, pediu à mãe que não o acompanhasse mais à escola, explicando-lhe o motivo; quando ela aparecia no portão do ateneu as crianças falavam injúrias, passavam a mão no rosto para ele e faziam caras de horror. A mãe suspirou e nunca mais pisou na porta do colégio.

Um dia, cansado de tanto sofrer humilhação, pediu para sair da escola depois de tantas brigas com os colegas. Aos treze anos de idade, Bene entrou como ajudante em uma sapataria. Mas logo aprenderam a chamá-lo de filho da queimada, igual no colégio. O serviço era leve, mas o cheiro forte da cola começou a causar vertigens e desmaios. Arranjou outro trabalho numa floricultura; os ex-colegas da escola descobriram e reuniram-se à porta e insultavam-no, o proprietário achou melhor dispensá-lo, porque as crianças fazendo essas injúrias na porta da loja, afastavam os clientes.

Após perder dois trabalhos, passou uns dias em casa, triste, mal se alimentava, amarelo, deitado, revoltado, emburrado e sempre bocejando. Não saía de casa e nunca mais acompanhava a mãe. Ela temia que o filho desmaiasse ou morresse em seus braços, por isso poupava-o e nem o repreendia. Aos dezesseis anos, vendo o filho recuperado e mais forte, a mãe pediu a um conhecido um lugar na oficina mecânica de carros. Ela contou toda a história ao proprietário da oficina e pediu que não deixasse humilhar o seu filho. Bene entrou com muita reserva e num silêncio por parte dos outros funcionários. No início Bene percebeu um sorriso tímido nos lábios dos colegas da mecânica, mas aos poucos essas suspeitas foram desaparecendo e até começou a sentir-se bem no trabalho.

Depois de alguns anos, Bene encontrou o amor da sua vida. Ele estava apaixonado! Adorava uma bela mulher de tez escura com cabelos encaracolados, sorriso perfeito, cútis suave como seda, olhos negros como veludo e lábios frescos como um botão de rosa. Voltou a ser carinhoso com a mãe dele. Num belo dia, ao ver seus próprios olhos refletidos na mulher amada, ele entrou alegre no quarto da queimada e beijou na face, num momento de eterna ternura.

Aquele beijo foi para a infeliz mãe uma bênção! Ela reencontrou o seu amado filho! Pôs-se a cantar o dia todo até o anoitecer e dizia consigo mesmo. Estou muito feliz. Meu filho é uma dádiva na minha vida!

Nesse ínterim, Bene compôs uma carta, uma profunda declaração de amor. Quando amanheceu ele enviou a sua missiva de sentimentos e ficou à espera da resposta. Depois de alguns dias, encontrava-se perdido na ansiedade por uma réplica. E pensava: ela é tímida. Começou a refletir sobre outros assuntos, até que recebeu a carta tão aguardada da sua amada. Ela aceitava tornar-se sua esposa e casar-se de branco na igreja, contanto que ele se separasse da mãe! As explicações eram confusas, desconexas, lembrava que no bairro todos o conheciam como o filho da queimada e que ela não poderia se sujeitar a ter essa alcunha “ nora da queimada.” Bene chorou! Ele não podia acreditar que a sua linda morena impusesse uma atitude tão perversa. Após reler a missiva e confirmar que era isso mesmo que ela queria, com muito rancor e indignado voltou-se contra a mãe.

Ela era a origem de toda a sua infelicidade! Essa mulher havia perturbado sua infância, seus trabalhos, seu futuro e agora, no momento mais delicado, sua felicidade poderia terminar por causa dela! Lamentava-se por ser filho de uma mulher tão desagradável e decidiu encontrar uma maneira de distanciar-se dela, morando noutra cidade. Ele sentia-se humilhado por viver sob o mesmo teto. Encontraria uma maneira de auxiliá-la de forma distante. Faria algumas visitas de vez em quando à noite, desacompanhado, quando a sua presença passaria despercebida.

Pensando desse jeito, Bene manteria seu papel como protetor de sua mãe, satisfaria sua amada Luiza, que, em troca, lhe concederia o seu amor.

Após enfrentar dias difíceis repletos de expectativas, ele decidiu, ao retornar para casa após um longo dia de trabalho, expor a situação à sua mãe.

Dolores estava sentada diante de sua máquina de costura, remendando a calça do filho que estava rasgada nos joelhos. Bene refletiu: seria justo pedir à sua futura esposa que convivesse com tais situações? Enquanto observava seu rosto marcado pela queimadura, disse: “Mãe, quero falar com a senhora” Ela desligou a máquina e ele disse: “A senhora nunca me explicou o que aconteceu no seu rosto!”

“Foi um acidente na cozinha”. Respondeu cabisbaixa a mãe. "Seria mais prudente não recordar isso!"

"Sempre a mesma resposta: é melhor não lembrar disso! Por que, qual é o mistério dessa queimadura?"

"Não vale a pena; nada pode ser feito." Disse a mãe, com uma dor profunda na alma, pois seu filho nunca havia se dirigido a ela com tanta agressividade.

"Escute com atenção! O patrão exige que eu vá morar perto da oficina. Já aluguei um quarto em uma pensão. A senhora fica aqui e eu virei toda semana para saber da sua saúde e se necessita de alguma coisa. O motivo é profissional, tenho que obedecer, não há remédio senão sujeitar-nos!" Ele, curvado e amarelo de graxa como todos os rapazes da oficina mecânica, onde o trabalho começa cedo e acaba tarde, lançara aquelas palavras com toda a sua energia e espreitava agora a mãe com um olho desconfiado e medroso.

Dolores se levantou, lançando um olhar severo para seu filho e com uma voz carregada de desprezo, acusou: "Mentiroso! Você está envergonhado de ser meu filho! Deixe esta casa, agora mesmo! Eu também sinto vergonha de ser mãe de um filho ingrato!" Bene, com o semblante abatido e surpreso com a atitude da mãe, que sempre foi paciente e amável, deixou a residência. Ela observou ele sair e bateu a porta com força. Sozinho, Bene vagou pelas ruas e desabou em lágrimas. Passou a noite em uma angústia profunda.

No dia seguinte teve vontade de retornar à casa, mas não teve coragem, via o rosto colérico da mãe, a queimadura na face direita, a sua atitude altiva, apontando-lhe com energia a porta da rua. Ouvia-a dizer-lhe as verdadeiras e amargas palavras que lhe atiraram no rosto; via toda a cena da véspera e não se animava a arrostar com o perigo de outra semelhante. Lembrou-se da sua tia e madrinha Sofia, que era carinhosa e atenciosa com ele. Foi à casa da tia pedir que ela intercedesse com a sua mãe e contou tudo o que aconteceu. Sua tia escutou-o comovida e disse: “Eu já previa que isso iria acontecer um dia, aconselhei a sua mãe a dizer toda a verdade, mas ela não me ouviu, aí está!” Bene, surpreso perguntou: “Que verdade, madrinha?” Ela olhou nos olhos do seu afilhado e disse: "Hei de dizer-lhe perto dela, anda, vamos lá agora mesmo."

Encontraram a queimada lavando as calças do filho, pois queria entregar-lhe a roupa limpa. Dolores havia se arrependido das palavras ditas e passou a noite acordada esperando que o filho voltasse para casa. Olhava o vazio e se queixava a si mesma por tudo que aconteceu. Quando a sua irmã Sofia e o Bene entraram na sua casa, ela ficou imóvel, alegre por rever o filho, iria pedir o perdão dele pelo que falou, porque estava nervosa.

Sofia chegou com o seu afilhado e foi logo dizendo: “ O seu filho foi à minha casa solicitar que viesse com ele pedir o vosso perdão pelo que houve aqui ontem, eu aproveito para contar-lhe o que já deveria ter-lhe dito!”

“Fique calada, eu lhe peço!” disse suplicando a queimada.

“Não me calo! Ele tem o direito de saber a verdade e vamos parar com essa pieguice que só tem prejudicado vocês dois. Seu pai foi embora, como sua mãe lhe disse, mas a verdade é que ela estava grávida e ele fez uma proposta para ela: a criança ou ele. Ela preferiu você. Olha rapaz, quem queimou a face do rosto da tua mãe foste tu!”

Sofia estava aliviada, há anos que ela queria contar a verdade, o momento era esse e não poderia adiar mais um dia sequer.

“Meu afilhado, você não teve culpa! Você era uma criança quando tudo aconteceu. Correndo para abraçar a sua mãe, você puxou para baixo o cabo da frigideira que estava no fogão, o óleo que fervia para fritar batatas voou para o rosto dela. Eu estava distraída, antes que eu pudesse evitar a catástrofe, o óleo marcava a face direita! Corremos para o hospital, mas surgiram várias complicações e uma forte infecção. A pele do rosto da sua mãe é muito sensível, por isso não houve a cicatrização. E ela ficou marcada para sempre. Ainda ouço o grito de dor que ela deu!”

Bene, em choque, desabou, caindo de bruços como se tivesse perdido a consciência. Sua mãe, Dolores, correu para socorrê-lo, garantindo-lhe que ele não tinha nenhuma culpa, foi um acidente.

“Meu querido filho! Era por isso que eu não queria lhe dizer nada!”